sexta-feira, 21 de setembro de 2012



E la nave va


Sorria. Servi-me de Machado de Assis para escrever esta frase com o único propósito de seja lida com devoção, recebida como parte da sabedoria cáustica do Bruxo do Cosme Velho. Seria, de fato, frase menor do escritor maior, mas é minha, composta mentalmente num raro passeio pela praia de Santos, tão logo amanheceu ordinária quinta feira de agosto. Vi tantos senhores e senhoras com seus corpos deformados pelo tempo, devassados em roupas sumárias, exibindo, sem receio, suas modestas condições físicas frente à inexorabilidade do envelhecimento, que não resisti ao tema.
Confesso, é tema recorrente, mas que há muito não rende boa prosa.
Em mim perpassa a ideia de que devemos olhar para trás com fúria – lema esticado de uma geração pós-guerra que não poderia mesmo olhar com ternura anos tão duros, mas transito por emblema carregado de outra natureza. Olhar o passado com benevolente inocência e, se isso não bastar para aplacar o mal vivido, olhar com a nostalgia dos detalhes, cuidando de que estes é que guardam os átimos que são, em suma, os anos.
.
Perdoem... Enfiei toda essa melancolia que não cabe a todos os leitores. Mas, seguro é que jamais alcançarei a necessária distância emocional para tratar de temas que, sem essa ou aquela, surgem caros.
E aquele senhor que beira os oitenta, que corre de maiô pela praia, que já foi garboso galanteador, não me basta. Nem mesmo a mulher que o acompanha, um pouco mais discreta em sua indumentária praiana, mas que traz no semblante um resto de ar atrevido. Antes, teria que olhar as toalhinhas de crochê da casa de suas infâncias, ver as flores lilases da louça de almoço, o bordado largado na pequena cesta sob a cadeira de balanço próxima a janela da frente. Podia ser ali, perto do largo de Moema, cuja igreja perpetua a paisagem antiga ou então, na pequena São Joaquim da Barra, empoeirada e solitária.
Para entender  as três senhoras que caminham tristemente em minha direção com enormes chapéus de sol eu precisaria folhear algum velho álbum de fotos e recortes, abrir uma gaveta para saber como guarneciam os lenços bordados ou os cadernos de recordações.
E daquele homem alquebrado que olha o horizonte sem esperança, eu gostaria apenas de ver, conservado em alguma gaveta do jovem galante, seu álbum figurinhas de infância. Talvez concluísse que, sob efeito de sua química hormonal e forte influência cultural de seu tempo, tenha sido um tirano em seu lar, lascivo fora dele. Ou quem sabe, fora um farmacêutico generoso, que deixava para depois o pagamento da fatura de jovens mães desesperadas em tempos bicudos. Há também outro senhor gordo, lerdo, acompanhado por aquela velha senhora que expõe seu corpo degradado em biquíni indefectível. Talvez sua perdida beleza também tenha exercido certa tirania amorosa. Ou, para aplacar meu insensato coração que tem agido com rigor extremo, dedico um outro jeito de olhar este senhor, esta senhora, que não se eximem da exposição de seus corpos, por serem apenas libertos. Entenderam que expor ou camuflar significam exatamente as faces da mesma moeda.
Foi assim que, deposta a razão, fiz um aceno para a entrega. Tentei experimentar, como se fosse a primeira vez, o mar à direita. Acima o céu, límpido e profundamente azul. O ar fresco de agosto e a solidão que deliberei para este dia eram afinal, para isso: dispor-me ao acaso, deixar-me levar pelo sentimentalismo que tanto me aborrece . Pronto: vamos, reconheça que esta gaivota cruzando o céu não é somente bela, é comovente. Estas nuvens, tocando o horizonte azul são as confirmações de que aquelas marinas que lhe intrigavam em telas esforçadas de pintores medíocres, eram apenas a expressão das vãs tentativas de retratar a inalcançável beleza do real. 
Houve, adiante, uma velha senhora orando. De frente para o mar, mãos espalmadas, devotas, olhos fechados e lábios móveis, balbuciantes, entregava-se socorro etéreo. A prece lhe socorreu, decerto, já que sua expressão pareceu-me de contentamento. E como somente a insanidade nos faz contentes em avançada velhice, imaginei que aquela senhora, facilmente, poderia nos representar.
Professor, pintor, doutor, desembargador, cronista, poetiza, vagabundo fosse o que fosse cada um desses andantes, certo é que, estão prestes a  ser nada.  Não há qualquer melancolia ou receio nesta ideia trágica. Não me parece possível pensar de modo diverso na natureza das horas.
Pudesse dispô-las, ia querer perdê-las. Talvez conversando com alguns fantasmas, já que meus interlocutores mortos são os melhores. Por vezes reclamo veementemente suas presenças mudas, já que os silêncios percebidos são os que abrandam a esburacada noite insone.
E, se pudesse mais que horas, perdidas ou vividas, pudesse o impossível, o impensável,  ia querer longo passeio com o velho mestre Machado, num acaso idêntico a algum pensado por seu fabuloso alienista.
Pudesse inqueri-lo e, certamente, me daria ombros e seguiria pela eternidade, negando tudo e sempre. Ou para sempre.
E esta poderia ser, desprezando qualquer modéstia, a crônica das negativas. Negar os vãos que afastam os barcos, negar os vãos do que deixamos para trás, alguns sem as necessárias revisões e desculpas; negar as lacunas do que, guiados pelo sensato, deixamos de fazer, negar horas, negar olhares. Horas vãs, olhos vãos. Negar o que deixamos de viver para seguir por este passeio longo por esta praia imensa.  No horizonte, uma nave antiga... Ainda bem que, ao morrer, morremos.

Santos, agosto de 2012 – manuscrita num velho caderno de tia Myrthes. Transcrita hoje, para o computador – 07 de setembro de 2012.