E la nave va
Sorria. Servi-me de Machado de Assis para escrever esta
frase com o único propósito de seja lida com devoção, recebida como parte da
sabedoria cáustica do Bruxo do Cosme Velho. Seria, de fato, frase menor do
escritor maior, mas é minha, composta mentalmente num raro passeio pela praia
de Santos, tão logo amanheceu ordinária quinta feira de agosto. Vi tantos
senhores e senhoras com seus corpos deformados pelo tempo, devassados em roupas
sumárias, exibindo, sem receio, suas modestas condições físicas frente à
inexorabilidade do envelhecimento, que não resisti ao tema.
Confesso, é tema recorrente, mas que há muito não rende boa
prosa.
Em mim perpassa a ideia de que devemos olhar para trás com
fúria – lema esticado de uma geração pós-guerra que não poderia mesmo olhar com
ternura anos tão duros, mas transito por emblema carregado de outra
natureza. Olhar o passado com benevolente inocência e, se isso não bastar
para aplacar o mal vivido, olhar com a nostalgia dos detalhes, cuidando de que estes
é que guardam os átimos que são, em suma, os anos.
.
Perdoem... Enfiei toda essa melancolia
que não cabe a todos os leitores. Mas, seguro é que jamais alcançarei a
necessária distância emocional para tratar de temas que, sem essa ou aquela,
surgem caros.
E aquele senhor que beira os oitenta, que corre de maiô pela
praia, que já foi garboso galanteador, não me basta. Nem mesmo a mulher que o
acompanha, um pouco mais discreta em sua indumentária praiana, mas que traz no
semblante um resto de ar atrevido. Antes, teria que olhar as toalhinhas de
crochê da casa de suas infâncias, ver as flores lilases da louça de almoço, o
bordado largado na pequena cesta sob a cadeira de balanço próxima a janela da
frente. Podia ser ali, perto do largo de Moema, cuja igreja perpetua a paisagem
antiga ou então, na pequena São Joaquim da Barra, empoeirada e solitária.
Para entender as três
senhoras que caminham tristemente em minha direção com enormes chapéus de sol
eu precisaria folhear algum velho álbum de fotos e recortes, abrir uma gaveta
para saber como guarneciam os lenços bordados ou os cadernos de recordações.
E daquele homem alquebrado que olha o horizonte sem
esperança, eu gostaria apenas de ver, conservado em alguma gaveta do jovem
galante, seu álbum figurinhas de infância. Talvez concluísse que, sob efeito de
sua química hormonal e forte influência cultural de seu tempo, tenha sido um
tirano em seu lar, lascivo fora dele. Ou quem sabe, fora um farmacêutico
generoso, que deixava para depois o pagamento da fatura de jovens mães
desesperadas em tempos bicudos. Há também outro senhor gordo, lerdo,
acompanhado por aquela velha senhora que expõe seu corpo degradado em biquíni
indefectível. Talvez sua perdida beleza também tenha exercido certa tirania
amorosa. Ou, para aplacar meu insensato coração que tem agido com rigor
extremo, dedico um outro jeito de olhar este senhor, esta senhora, que não se
eximem da exposição de seus corpos, por serem apenas libertos. Entenderam que
expor ou camuflar significam exatamente as faces da mesma moeda.
Foi assim que, deposta a razão, fiz um aceno para a entrega.
Tentei experimentar, como se fosse a primeira vez, o mar à direita. Acima o
céu, límpido e profundamente azul. O ar fresco de agosto e a solidão que
deliberei para este dia eram afinal, para isso: dispor-me ao acaso, deixar-me
levar pelo sentimentalismo que tanto me aborrece . Pronto: vamos, reconheça que
esta gaivota cruzando o céu não é somente bela, é comovente. Estas nuvens,
tocando o horizonte azul são as confirmações de que aquelas marinas que lhe
intrigavam em telas esforçadas de pintores medíocres, eram apenas a expressão
das vãs tentativas de retratar a inalcançável beleza do real.
Houve, adiante, uma velha senhora orando. De frente para o
mar, mãos espalmadas, devotas, olhos fechados e lábios móveis, balbuciantes, entregava-se
socorro etéreo. A prece lhe socorreu, decerto, já que sua expressão pareceu-me
de contentamento. E como somente a insanidade nos faz contentes em avançada
velhice, imaginei que aquela senhora, facilmente, poderia nos representar.
Professor, pintor, doutor, desembargador, cronista, poetiza,
vagabundo fosse o que fosse cada um desses andantes, certo é que, estão prestes
a ser nada. Não há qualquer melancolia ou receio nesta
ideia trágica. Não me parece possível pensar de modo diverso na natureza das
horas.
Pudesse dispô-las, ia querer perdê-las. Talvez conversando
com alguns fantasmas, já que meus interlocutores mortos são os melhores. Por
vezes reclamo veementemente suas presenças mudas, já que os silêncios
percebidos são os que abrandam a esburacada noite insone.
E, se pudesse mais que horas, perdidas ou vividas, pudesse o
impossível, o impensável, ia querer
longo passeio com o velho mestre Machado, num acaso idêntico a algum pensado
por seu fabuloso alienista.
Pudesse inqueri-lo e, certamente, me daria ombros e seguiria
pela eternidade, negando tudo e sempre. Ou para sempre.
E esta poderia ser, desprezando qualquer modéstia, a crônica
das negativas. Negar os vãos que afastam os barcos, negar os vãos do que
deixamos para trás, alguns sem as necessárias revisões e desculpas; negar as
lacunas do que, guiados pelo sensato, deixamos de fazer, negar horas, negar
olhares. Horas vãs, olhos vãos. Negar o que deixamos de viver para seguir por
este passeio longo por esta praia imensa. No horizonte, uma nave antiga... Ainda bem
que, ao morrer, morremos.
Santos, agosto de 2012 – manuscrita num velho caderno de tia
Myrthes. Transcrita hoje, para o computador – 07 de setembro de 2012.