domingo, 6 de outubro de 2013

Hoje estou publicando uma delicada crônica de Luciana Teixeira de São Joaquim da Barra. Seus textos são sempre corretos, sem artifícios que não sua arte de escrever bem, direito. Adoro. Aos amigos que às vezes me visitam, então, segue seu texto sobre saudade. Ele não esbarra no sentimentalismo, nem no piegas. É legítimo, franco.


Depois de todos estes anos, já não me surpreendo mais com suas visitas repentinas, principalmente em noite de chuva, como a de ontem. Espaçosa e íntima, você, Dona Saudade, esparrama-se facilmente em minha cama, sem ao menos pedir licença. Apodera-se de meu cobertor, este então, rende-se rápido à sua fria presença e inevitavelmente logo deixa de me aquecer. Encolho-me no pouco espaço que me resta e assim me entrego à insistência de suas histórias. Juntas, assistimos aos filmes que surgem projetados nas paredes da minha memória. Sua presença sufoca-me, mas ao mesmo tempo me acalma. Recebo-te sempre com muito respeito e sem te pedir quase nada em troca, peço-te somente que sejas gentil comigo. Que chegues perfumada de Leite de Aveia e traga-me risos bobos de lembranças amenas - E muitas vezes, você nem me ouve... E então, exausta, adormeço em meio às fronhas encharcadas, feito a chuva lá fora.
Amanheceu e você já não estava ao meu lado, mas sei que esteve a noite toda. Mesmo dormindo, senti o peso de seu olhar me espreitando madrugada adentro. Olhos vigilantes, fixos, obstinados em mim. Já nem me importo mais.
Este é seu ritual, chega sem avisar e parte sem se despedir. Sempre foi assim, mas hoje você inovou, talvez como forma de agradecer a hospitalidade, ou mesmo se desculpar pela bagunça deixada no meu peito, hoje você deixou um registro de sua passagem. Meus olhos ainda embaçados foram ganhando foco ao ler o bilhete, oportunamente deixado sobre o criado-mudo, logo abaixo do estimado porta-retrato. A caligrafia redonda, meio corrida, passou seu recado e desta vez assinou seu nome e sobrenome:

“Até qualquer hora...”
Ass: Saudade de Pai e Mãe


Luciana Teixeira

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Este ano as uvas serão dos pássaros 

Memórias de uma mulher que nunca deixou seus sonhos para trás.


Epígrafe:

O tempo parece vilão. Mas é apenas tempo,
templo que encerra nossa existência.


Prefácio

Em 29 de novembro de 2.006 vovó teria completado 100 anos se não tivesse morrido aos 92*. Ela desejou chegar aos 100, falava muito sobre isso. Partiu, contrariada. Desconheço alguém que partisse mais contrariado para o outro lado.
Vovó foi também  uma figura central (e controvertida) em nossa família e transmitiu-nos, continuamente, seu maior legado: suas idéias. Talvez nem pensasse que as tivesse. Elas – as idéias – se apresentavam naturalmente, como a chuva, o sol, o equinócio. E eram simples.
Se eu, ou qualquer um lhe dissesse: Dona Sebastiana, a senhora tem boas idéias! Ela, provavelmente se surpreenderia e talvez respondesse, simplesmente: É mesmo?
Acredito também que se minha avó tivesse vivido num ambiente da efervescência cultural do movimento modernista de São Paulo, por exemplo, talvez tivesse desenvolvido suas habilidades, seus talentos, abafados pela vida dura do campo, pelo ambiente sisudo das casas dos majores, coronéis, pais, padrastos, maridos produtores de café do início do século XX.
Assim, em vez experimentar o pensamento livre, exerceu a obediência cega.
Se não, teria sido uma grande escritora, uma talentosa romancista. Sua habilidade de contadora de histórias era notória. Ela conseguia narrar com beleza o essencial em suas simples e cotidianas histórias de família. Ela transmitia as sutilizas desse cotidiano, além da notável capacidade de criar continuamente suspenses e desfechos inesperados, surpreendentes.
E, claro, moralizantes. Suas histórias familiares eram fábulas que ensinavam, cada uma, uma pequena lição. Não que tivessem, na origem, tais lições. Esta era outra habilidade daquela boa senhora: ela extraia do ato comum uma lição para todos nós e, como ela própria gostava de dizer: para todo o sempre. Piscava e arrematava: Amém.
Sempre desejei transformar em contos, novelas, romances aquelas que – cada  vez mais lhe cabem este nome – Histórias Espetaculares de Dona Sebastiana. Não faltou o engenho. Faltou a arte.
Vovó viveu a opulência e a pobreza, mas ela própria não diferenciava esses padrões em relação a sua felicidade. Não lhe fez falta o dinheiro, quando o perdeu.
E só a vi lamentar – tristemente, de uma tristeza perene – a perda de seus dois pequenos filhos, numa trágica seqüência de fatos. A vida arrancou daquela jovem mãe dois filhos em dois dias.
De resto, suas queixas eram de pequena monta. E a prova cabal de seu amor à vida e à sua família eu tive, num crepúsculo de verão, na varanda da casa de mamãe em Ribeirão Preto. Vovó olhava o céu vermelho. O calor dava naquele momento, pequena trégua. Uma aragem de chuva tocou-nos, de leve.
E ela me disse, do alto de seus noventa anos: Sabe? Eu vivi intensamente. Se tem uma coisa que fiz nessa vida, foi isso: viver, intensamente.
Como eu – que conhecia toda sua trajetória, toda sua vida – poderia supor que ela vivera intensamente? Vovó não realizara grandes viagens, grandes negócios, não teve sequer um minuto de fama, não tivera ou exercera qualquer ato ou função fora do âmbito doméstico e tampouco fora desse contexto experimentara qualquer êxito. Tivera a vida comum das pessoas comuns numa comum cidadezinha do interior de São Paulo. Poderíamos dizer até mesmo que vovó foi uma autêntica caipira. Esse caipirismo às avessas ela trouxe a São Paulo, quando se mudou, aos quarenta e poucos anos. Conservou com orgulho, seu sotaque e jeito de falar, não incorporando um único trejeito da cosmopolita São Paulo, nem mesmo quarenta anos depois. Sobre São Paulo ela dizia apenas: amo esta cidade.
Mais um novo suspiro e repetiu a frase: amei muito meu marido, vivi intensamente.
Só minha avó conseguiu dizer este advérbio como tamanha verdade. Os advérbios aliás, contavam de suas narrativas para estranhamento de quem conhecia seu grau de escolaridade. Grau de escolaridade que vovó mencionava com um orgulho de nos encalacrar:  eu tenho o primário incompleto.



*Zélia Gattai usou esta adorável figura parecida para abrir um de seus deliciosos romances. Eu utilizo esta ideia como uma singela homenagem.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

São Joaquim da Barra é saudade pura

São Joaquim da Barra é saudade pura


A hora do encontro
É também, despedida
A plataforma dessa estação
É a vida desse meu lugar
(Milton Nascimento)


Quando eu era criança em São Joaquim da Barra não era assim.  Se eu quisesse um doce, ia à padaria, escolhia entre dois ou três, maria mole, cocada branca, abóbora com coco, pronto. Saciada com dois tostões.
E sem os tostões, dá-lhe cajamanga, goiaba, caju, jabuticaba... Meu Deus! Jabuticaba no pé! Como era doce a jabuticaba, a vida... Eu via minha mãe rindo, rindo, com as amigas. De que riam tanto? Não sabia não, mas rir era tão natural, comum, que não havia desmancha-prazeres que boicotasse aquela alegria.
A tv nascia, o Direito de Nascer reinava: as mulheres – muitas em volta da única televisão da vizinhança, a televizinho, choravam. Mas o intervalo, com a farinha Láctea Nestlé, geladeira GE e Meire Nogueira aconselhando todas a mudarem a marca do sabão em pó, bastava para pôr fim às lágrimas.
E a vida era assim, simples. As casas, lembro-me bem, eram semelhantes, não serviam de referência segura acerca do padrão econômico de cada família. Na sala, um sofá e duas poltronas. No centro uma pequena mesa com um vaso de flores plásticas. As flores plásticas não eram escolhas, propriamente. Representavam o novo, o moderno, a nova estética. Ademais, perenes, sem a ameaça contínua do efêmero.
As cortinas das salas eram de algodão, cada qual costurava a sua, tecido estampadinho, xadrezinho, sem retoques. E a sala se transformava refúgio pela suave penumbra, que, no entanto, só tinha mesmo a qualidade de refrescar do sol escaldante que costumava invadir as casas pelas janelas frontais.
Tudo era confiável. A rua, a praça, a farmácia. Nesta, havia sempre um velho amigo a pincelar gargantas inflamadas e aviar receitas para febres vãs. E a praça era encontro, união, reconciliação. E as ruas eram mero caminho, transitar tranqüilo, até a entrada das casas, todas com janelas amigas, todas de portões baixos.
Os pequenos portões eram convites para as longas tardes que poderiam terminar na Baixada, no Espigão ou embaixo de alguma mangueira de algum  quintal. Não se enganem as mentes inquietas sobre baixadas e espigões. Eram nomes ou apelidos dos clubes da minha cidade interiorana que mora em meu coração. Presentes em seus apelidos a topografia e localização, dividiam opiniões. Uns preferiam um, outros outro. Mas havia uma opinião convergente: carnaval bom é do Espigão.
O tempo não tombou todas as lindas casas de minha infância. Algumas me trazem lembranças claras. Cheirinho de bife da casa da Maria Conceição, café coadinho na hora da casa da dona Amália, doce de manga servido com sorriso na casa da dona Nena. Pelos caminhos, alguns tropeços, decerto, mas na lembrança somente as copas com mesas de fórmica, a geladeira GE, o bufê enfeitado com bibelôs.
Não havia descompasso naqueles idos e até o apito do trem era como um velho conhecido que retornava, vindo de longe e trazendo boas novas. As partidas... Bem, a plataforma daquela estação reproduz a poesia de Milton Nascimento, sem tirar nem colocar nada.
Os sabores se assemelham aos odores: café, bolo de milho, biscoito de nata. E cada casa tinha igual cozinha, fogão à lenha, ornamentado, contrastando com os modernos fogões à gás Walig ou Cosmopolita. Cozinha arrumada e cheirosa logo duas da tarde e sobrevinha fogão enfeitado com toalhas, vasos de flores. Tão familiar e doce que declaro publicamente meu desapreço aos decoradores modernos que insistem em dispensar adornos sobre fogões que teve como conseqüência extinguir dos enxovais as toalhinhas de fogão.
Aliás, ao que parece, e que não me traia a nostalgia, não se fazem mais enxovais, aqueles que ficavam anos guardados em baú de carvalho, pinho ou até mesmo amendoim. Este último me traz uma lembrança adicional. Fui incapaz de interpretar corretamente uma locução doméstica: baú de amendoim... E quando diziam: Vá lá, no quarto buscar tal coisa, está sobre o baú de amendoim! Eu imaginava o amendoim torrado na casca das quermesses dependurados, como frutas no pé, naquele móvel escuro que servia também de mesa de passar roupas.
Ninguém precisava trocar o fogão, o sofá, a geladeira, a decoração e enfeitavam a casa com vasos de plantas, colchas de retalhos. Só eram perdulárias com o tempo, que desperdiçavam sem dó com o simples viver.
Como foi que inventamos – ou nos deixamos levar – por tantas necessidades? Como é que uma criança pode escolher entre tantas opções? Quem  poderá conduzi-las a este mundo simples que hoje, decerto, só lhes parece insípido?
E fazem dietas, muitas de nossas crianças! Comem com culpa, olhem isso!
Por isso desejo frequentemente que a busca pelo nov nos leve, invariável e diuturnamente, ao mais comum déjà vu. Retomamos nosso em círculo vicioso ansiando por um encontro sincero e comovente com um simples vaga lume.

E eu tenho uma tese: o Facebook deu certo por que nos devolve a ancestral vila, aldeia. Aquela que sobrevive em nossa alma, clama por providências e carregamos em nosso DNA. Por isso o Facebook funciona;  Ele é a praça da igreja matriz, a barbearia, o quarteirão, a esquina. Era para ir à praça que costurávamos lindos vestidos de tecidinhos estampados e os homens escolhiam seus melhores chapéus Era lá também que contávamos entre risos, como foi a festa de aniversário, a viagem à capital, o baile de formatura. Era na missa das dez que se teciam casamentos de toda a vida. E nas barbearias fervia a política e nas esquinas surgiam movimentos. E por ai também que os amores eram declarados por gestos e olhares e todos curtiam com seus sorrisos francos.