quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Em um caderno, em 18 de janeiro de 1988

As noites quentes lembram a infância em São Joaquim da Barra, as suas ruas escuras, as brincadeiras na calçada, as manhãs amarelas, ensolaradas, com doce sabor de jabuticaba. Há, por acaso fruta mais lembrança que jabuticaba?
Já as noites frias me lembram do inverno de 1975, quando pisei na cidade de São Paulo para viver. A cidade, desconhecida, misteriosa demorou a me sorrir. Era fascinante para uma jovem com apenas uma mala na mão esquerda, alguns jornais amassados sob o braço direito, uma destra canhota que buscava disfarçar o embaraço de andar por ruas revoltas tal um mar bravio. A noite as ruas brilhavam e pela janela do apartamento do quinto andar, minúsculo para os padrões das casas interioranas, eu observava a cidade que ia calar-se parcialmente. Foi solitária minha estada inicial e pude experimentar sonhos ilimitados, receios limitadores, precipitadas angústias. Era a distância entre a criança e os primeiros sinais de maturidade em mim.
O calor sempre me agitou, com vontades bem bobas, de tomar sorvete de chocolate, limonadas ou suco de caju Maguary – era o primeiro industrializado, naquele Brasil quase amador de sua pretensa modernidade, ainda mais aquele caju nordestino chegando para anunciar que agora tudo poderia ser exatamente igual, mesmo gosto na bebida, na comida do restaurante da esquina, ou no café expresso. A impessoalidade das ruas, dos sabores idênticos, dos horários estranguladores, das buzinas dos automóveis estagnados colaboraria, definitivamente, para transformar o tempo numa mancha cinza, inequívoca: passado assim transforma anos, décadas, em estalo.
Os amigos distantes – alguns mortos – deram o tom de certa melancolia daqueles anos. A insegurança plena de estar viva era palpável: não havia ainda feito psicanálise e Deus estava vivo. Não bastasse encarar o fato que vivia e que tudo era real,  andava lendo poesia demais. E um poema de Omar Khayyam deu elevou o tom de meu desvario: "Somos os peões de misericórdia, Partida de xadrez, jogada por Deus, que nos desloca, nos para, nos põe adiante. Depois nos recolhe um a um para a caixa do nada".
Dava-me arrepios ocasionais saber que existia e mais, que deixaria de existir.
Indagava com resquícios juvenis da velha senhora que sempre habitou aquela jovem, quem poderia salvar-me do delito de existir? Quem poderia nos afastar do medo de existir e de saber que existimos? E como seria a imensidão do depois, sem herança, sem memória, sem futuro?
Ainda me ocorria que poderia ser outra e não eu. Outro ser, outro lugar, outro tempo. Estas possibilidades se apresentavam como maior, muito maior, do que a possibilidade de ser quem era, estar onde estava. Pensar que poderia ser outra, que existir é acaso e possibilidade, que poderia, então, estar a beira da guerra, ser miserável, ter fome e não poder comer, sequer aprender a ler me atormentavam.
Quem me presenteou com pais elegantes, cultos, responsáveis? Quem meu deu filhos lindos?A quem pertence este pulsar íntimo que ora é amor, ora é nada? Quem me deu tudo isto, mas que não posso reclamar minha inquietação?
Quem me tirou talentos musicais, artísticos, poupou-me de desengano de não sentir-me amada? Quem acolherá meu corpo cansado?
E alguém saberá que quisera ser mil? E que sou apenas uma e sequer me sinto única. Alguém poderá reparar que eu me sinto pouca e não me basto?
E eu vivo pensando que, tendo motivos, explicaria. Longe, pessoas nascem e o céu está repleto de aviões.  Pessoas vivem guerras, experimentam ódio, experimentam matar. Assim, alguns nascem à bordo dessas possibilidades, outros, à salvo. Muitos ficam à beira. Outros tantos caem. Crianças não comem, não comem, não comem...

E não sobreviverei neste deserto sem sombras, espiando certas obrigações em fazer coisas que jamais farei e que decerto vai construir agonias e remorsos. A pele que não me cabe dá ainda a dimensão de minha inutilidade em estar aqui, existir, repetir rituais, ganhar ou não dinheiro, envelhecer ou não. Não me acompanha um espelho, nesta jornada, para repetir a poesia de buscar a face ou refleti-la, no deserto.

domingo, 11 de maio de 2014

Caderno de Língua Pátria

Vi um dias desses,  um caderninho, daqueles brochuras, mais largo na base que eram usados, no grupo escolar, somente para “Linguagem” ou Língua Pátria, ou o popular (e desrespeitado) Português de hoje em dia. Sim, pois Português era disciplina do ginásio, aos estudantes da escola primária cabiam estudar Linguagem ou Língua Pátria.  Por que este caderno era o eleito para servir a tal matéria é mais um dos indevassáveis mistérios do grupo escolar do meu tempo. Havia outros, mas não vem ao caso.

Queria falar do caderninho. Quando o vi, na prateleira do supermercado, ao lado dos sofisticados cadernos universitários (usados indistintamente por qualquer reles estudante da 5a série) fiquei tentada: queria possui-lo.
Um outro indevassável mistério. Talvez julgasse que voltaria a escrever como antes, como na longínqua adolescência, que enchia suas páginas em lacrimoso diário. (Comprava este, ordinário, barato e não os enfeitados com flores e corações, destinados aos diários das meninas. Era a textura do papel que me interessava na época, que modificava a letra, eu gostava desse. Ademais a linha longa cabia as frases maiores que exigia uma instintiva diagramação). Assim, fiquei tentada a compra-lo. Acho que foi saudade do passado. Saudade da pracinha do ginásio, dos bons amigos perdidos no tempo, das risadas soltas e despretensiosas, saudade da vida por vir, saudade do futuro que nos sorriria e ainda não fora consumido pelo tempo que transforma esse futuro num túnel negro e tenebroso.
Pulei da infância para a adolescência, sem qualquer motivo. É a confusa saudade de uma quase sexagenária que julga ainda percebe-la desalojada da melancolia. Sim, por que sei que em breve alcançarei este túnel escuro, mas ainda, misteriosamente, não o temo. E recordei-me das professoras que tive, do pátio da escola cheirando a sopa de legumes, das terríveis aulas de religião que me incutiram o temor a Deus e me fizeram crer, seguidos anos, que era pecado roubar biscoitos do armário da cozinha de minha própria casa. Não pude evitar e lembrei-me que naqueles tempos, na pequena São Joaquim da Barra e, certamente em todas as pequenas cidades desse Brasil esquecido por seus governantes, algumas criancinhas iam descalças à escola. Havia em seus semblantes uma resignação envergonhada, os olhos sempre baixos, a vergonha da pobreza explícita. No segundo ano do grupo escolar houve uma menininha descalça que me causava uma indefinível sensação de mal estar. Era dor, mas eu era muito pequena para saber que a pobreza doía. Ela era magricela, cabelos marrons desalinhados. Trazia sempre o nariz escorrendo, e, na expressão, ausência de alegria. Vestia o avental branco do uniforme, feito de saco. Nas mãos um caderno fino, encardido e desencapado, um lápis e uma borracha. Não tinha as malas de couro com estojos de lápis de cor que todos os colegas ostentavam. Exposta na primeira carteira da fila, posto que fosse miúda, expunha as vísceras de um cadáver decomposto, o descaso, o abandono. Eu logo atrás podia ver suas solas imundas e perninhas tortas, sempre em movimentos ritmados. Nosso turno era de três horas apenas, não havia intervalo para lanche, mas apenas sopa para as crianças da Caixa. Esta locução que nunca tive a capacidade de compreender levava esta raquítica garotinha a responder uma pequena chamada e entrar em fila para receber uma colher das mãos da professora. Iam e vinham rapidinho, enquanto os alimentados continuavam decorando a tabuada.
Da menininha descalça não lembro o nome, mas guardo algumas lembranças nítidas. Às vezes ela, timidamente aproximava-se das crianças que corriam pelo pátio, brincando, esperando que alguém a convidasse, na verdade, autorizasse sua entrada na brincadeira. Sua humilde espreita nem era percebida, mas as crianças podem ser generosas, às vezes, e logo alguém a incluía na brincadeira. Pronto. Ela sorria, limpava o nariz com o braço direito, vez ou outra gargalhava até ficar vermelha. Lembro-me como a melhor lembrança daquela menininha triste, de sua gargalhada até as lágrimas.  Mas recordo-me: não concluiu sequer o segundo ano. Fez todo o catecismo, mas tampouco esteve presente no dia da Primeira Comunhão.
Meu pensamento romântico me fazia crer que escolheu viver feliz, entre jabuticabeiras, entre os seus. Meu cético pai, no entanto, lamentou a sorte da menina magrinha supondo que fosse, sem escalas, dos bancos escolares para o roçado, para a enxada. Mas, posso imaginar que cresceu, apaixonou-se por um rapaz forte que carpia a terra, teve muitos filhos por que é doce pensar assim, assim quero pensar.

E tanta reminiscência por causa de um caderno de linguagem, que acabei por não comprar! Achei que talvez o rapaz do caixa estranhasse uma senhora pagar por aquele caderninho, talvez  julgasse que eu quisesse apenas voltar a ser criança, coisa que não me agrada, que, se pudesse escolher ser qualquer coisa, criança é que não seria, ah, não, tão instável e medrosa, com tantas perdas por vir. Se pudesse escolher ser qualquer coisa, talvez seguisse o desejo do mestre Braga e ser passarinho. Mas, não sei se tenho alma de passarinho, talvez pudesse virar coruja para não temer, jamais, a noite. Mas escolhas por escolhas, poderia me permitir ficar feito criança em loja de brinquedo ou vitrine de doces, entre tantas possibilidades escolher nenhuma e entregar-me a ser, quem sabe, um lago sereno... Melhor ainda chuva, para ser ainda mais breve neste mundo... 

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Amar Mário de Andrade, um explícito ato de antropofagia**

Mário de Andrade voltou a viver em São Paulo em 1941, à Rua Lopes Chaves 546. Voltou, pois esta foi a casa de sua juventude. Também nessa esquina morreu em fevereiro de 1945, aos 52 anos de idade.
E hoje, meio século e década depois, eu, que inadvertidamente já vivi mais que ele, ultrapassei a soleira da porta principal do belo sobrado, que esbanja amarelo e sobrevive, para o bem da verdade, preservado, entre o caos das demolições e a vizinhança de concreto e vidro.
Penetrei, cerimoniosamente, entre as paredes do vestíbulo. Em frente, a porta da cozinha entreaberta, me convidava para espiar peculiar chão xadrez. Não avancei, era cedo para atingir a sólida cozinha, centro nervoso das velhas casas, descrição precisa da nostalgia. Desviei o olhar para a direita. Uma linda escada de madeira escura desvendaria o segundo andar. Mas, fui seduzida por outra, estreita, escondida, que descia ao porão.  
Esta casa tem porão, berrou meu coração! Há de ser, pensei, um porão digno de Rubem Braga, habitável, porém inabitado. Ou, por outra, habitado por fantasmas discretos que a noite caminham em vago silêncio cortado por estalidos que denunciam a assustadora presença de nós mesmos, perdidos em medos indevassados.
O porão limpo e seco. Mas, jazia abandonado e solitário piano. Trancado. E meu revelador de momentos sem bateria, nem uma mísera foto! E o piano trancado!
Se buscava resquícios de Mário de Andrade naquele porão vazio, claro estava que seria naquele piano... Trancado! Olhei ao redor, para não me expor ao ridículo, mas queira tocar a madeira, como nos filmes. Piano feliz dos tempos em que as mãos de Mário, decerto, ainda não tremiam de tristeza pela perda do irmão, meu Deus, por que sei tanta coisa da vida de Mário de Andrade e agora vou ficar assim nesta tristezona por que um jovem de 14 anos morreu no final do século XIX, enlutando uma pobre mãe, detonando um sensível irmão?
Pouso as mãos sobre a tampa do piano, madeira quente, viva. Nem um mísero grão de poeira para acercar-me do passado que suspeitei existir naquele instante, naquele lugar improvável. A poeira das horas ali e alcançaria algum passado, tocaria no passado. Nada. Tudo limpo, asséptico e, contudo, abandonado. Chega, anuncia despertador do celular. Vejo as horas: as aulas vão começar.
Subo apressadamente: as aulas seriam na imensa sala em frente. As portas com pequenas janelas de vidro antecipavam a luz do mesmo Sol que aqueceu tardes andradianas; a maçaneta emperrou, forcei, emperrou, forcei. Entro. O pequeno grupo de oito alunos e a jovem professora já estavam a postos. Mas sala era convite ao devaneio, calma, espera, já já falaremos de nossa incipiente produção literária, já já falaremos sobre tese do autor, introitos, sinopses. Sala ampla ampla ampla, clara, clara, clara, fresca, fresca, fresca, contei oito janelas! O chão, de tábuas largas e claras, brilhava. Na parede extrema, para instigar minha antropofagia particular, a andradiana, outro piano.
Tempo, voa, horas, passem, quero o termo desta discussão interminável do que seja literatura, não, não precisa dizer que podemos narrar assim, assado. Frito de ansiedade para ver o marfim daquele teclado e deixa para lá este conceito que literatura é libertadora, é nada, é solidão e ansiedade, é dor e desconforto, é apagar a luz e caminhar no breu dos corredores labirínticos e inexplicáveis, é conjugar apenas os verbos irregulares e defectíveis, é despencar ao chão quando se quer atingir o céu, é franquear a entrada do diabo enquanto implora a Deus uma conjunção. Ah, não, nem quero saber que viver de literatura no Brasil é pra poucos, aliás já sei, ah, é preciso arriscar-se sempre, sair do conforto, acumular musculatura aos textos passionais. Chega! Calma blogueiros inquietos, calma. Para que  precisam destas ideias recortadas? Agora eu só quero mesmo ver o quintal pela janela dos fundos.
Teria aquele quintal, varal? Roupas claras dependuradas?
E o piano, pode estar desafinado? Esta sala não comporta sons comportados da boa manutenção de um piano encalacrado no futuro, mas só cabível naquele passado que preciso cheirar, tocar, quem sabe uma minúscula peça de Bach dos meus 12 anos.
Então, para o final do curso faremos um breve relato sobre a experiência deste, em forma de conto, é preciso já nos preparamos, aconselha a bela jovem professora que sorri, alheia manifesta da ocupação inoportuna da casa do poeta.
Todos saem inclusive a boa e velha senhora cega que aguardava o motorista. Sua história nos comoveu – seus pais escaparam do holocausto nazista – mas não podia mais fazer-lhe companhia. Ela se despede e me aposso, finalmente do piano, antigo, nossa, como é antigo, tem dois castiçais de prata incrustrados em seu tampo.
Arrisco o que vem a mente, um trecho melancólico de Reverie de Schumann. Discretamente, na sala vazia, esnobo meu parco saber pianístico, que a mnemória concedeu-me como um prêmio, totalmente dedicado ao fantasma que suponho visitador daquela esquina, nas horas estáticas.
Entra uma gorda mulher de ar cansado:
- Não pode tocar este piano não! Senhora! Não pode tocar piano não!
Bem, cai das nuvens – melhor que do terceiro andar – e me desculpei com fingida educação.
Sem desprezar os despojos dos detalhes que presumia encontrar naquele espaço, apressei-me. Fui à janela do quintal e nada poderia estar mais perto do que imaginei. Quintais antigos fazem parte de minha memória fotográfica. Minha avó viveu num casarão daqueles na hoje degradada rua Dino Bueno. Era igual o chão com matinhos nascendo no cimento gasto e de prêmio, a escada escurecida pela implacável pátina do tempo.  
Subi oposta escadinha que ia para a cozinha. Claro, ia servir-me de suculento e gorduroso Peru de Natal. Admito: lambuzei-me.
Voltei ao vestíbulo: tinha sérias intenções de subir aquela escada. Ainda me restavam 30 minutos até fechar o órgão público que aquela casa abriga. Subi lentamente, era preciso pisar leve e retardar o tempo. No segundo andar o assoalho brilhante faria ecoar meus passos tímidos e meu respeitoso encontro com seu quarto de vestir (soube pela minúscula tabuleta à porta), já que estava travestido de vulgar sala de aula. Rejeitei lousa, carteira e me pus a frente de minhas amigas coisas vividas, passadas, vencidas.
Restava buscar os espaços antes preenchidos por mesas, poltronas, estantes abarrotadas de alfarrábios injustiçados e, quem sabe, a porcelana do chá. Esta, poderia estar numa sobre uma mesa redonda embaixo da janela. Um livro aberto, óculos sobre ele e, perfume de jasmim, aroma preferido dos fantasmas.
A realidade pode ser cruel e chegar sob a forma de desafinada ordem: uma voz instável anunciava o fechamento da casa. Suspirei, passeando pelo sólido passado, que esta boa casa da esquina abriga.
Tenho predileção pelas casas de esquina. Em geral, são altivas, incorruptíveis. É preciso mais que tijolos e ângulos retos para dominar a ponta do quarteirão. É necessário domínio da razão, é preciso ajuntar certezas concretas, fustigar o impertinente destino e destinar vagas para o abstrato. É também indispensável ter janelas sempre abertas para os passarinhos. Sem passarinhos, uma casa de esquina pode aniquilar-se. Escadas de cimento, corrimões confortáveis, canteiros aromatizados por toda espécie de cálices e corolas são insuficientes sem as doces e pequeninas aves que se salvaram dos estilingues. Além disso, são belas, as casas de esquina. Afeitas a lisonja, não omitem sua beleza, esbanjam soberania. Mais ainda, esquinas de poetas.**


* Ia entregar, mesmo não respeitando a forma de conto, este texto na terceira e última aula do curso, mas recuei: literatura é fluida, não cabe nas regras que se pretendeu, ali, assegurar. Impossível domesticar a literatura. Deixemo-nos que se entregue ao desvairismo!
** Oswald de Andrade há de perdoar a distorção total de sua antropofagia.


quarta-feira, 5 de março de 2014

Roxana Crônicas: Adorar, Verbo mais que perfeito

Roxana Crônicas: Adorar, Verbo mais que perfeito: Adoro janelas embaçadas, quartos exíguos, salas assimétricas. Adoro aquele quarto vanghoriano, mínimo e exuberante em sua pequenez.  Adoro...

Adorar, Verbo mais que perfeito

Adoro janelas embaçadas, quartos exíguos, salas assimétricas. Adoro aquele quarto vanghoriano, mínimo e exuberante em sua pequenez. 
Adoro aquele matinho que nasce nas calçadas superando o impossível. Adoro se, de vez em quando, em suas pontinhas miúdas, ostentarem miniaturas de flores. 
Adoro haikai. 
Adoro respostas monossilábicas, adoro o inverno cujas noites se apressam para encurtar meu dia.
Adoro café forte. Adoro aquelas pequeninas fotos de família que habitam o fundo das caixas e desafiam nossa visão e entendimento.  Adoro visitar minhas lembranças contornadas por óticas minimalistas. 
Adoro, simplesmente adoro, meus netinhos. 
Adoro silêncios curtos, longas sinfonias, mas as pequenas peças de Mozart falam direto à minha alma. Adoro Solfeghieto, de Carl Philipp Emanuel Bach. Adoro a calma.
Adoro instantes. Adoro opostos. Adoro ortodoxos. Adoro complexos e circunflexos. Adoro amplexos. Adoro poucas e boas poesias.
Adoro ser fiel e adoro a fidelidade. Adoro o amor, o amar, o juntar, o dividir. Adoro pão com manteiga. Adoro muito mais café com leite. Adoro contar, interceder, criticar, discordar e endossar.
Adoro docinhos descomplicados. Adoro xicrinhas, ainda mais bules com delicadas estampas. Adoro bibelôs impossuídos, adoro louças empossadas, adoro velharias. Adoro metáforas, metonímias, apostos, análogos, círculos, sinopses, acasos. Ah, confesso, adoro acasos.
Adoro desleixos, fuleiros, ordinários, sectários. Adoro o ousado e o instante do beijo roubado. Adoro o escondido e o fugidio. Adoro avis raras, ossos do ofício, força de expressão. Odeio sacrifícios. Odeio justificativas.
Adoro formações rochosas, pigmentos magentas, águas claras. Adoro o opaco, o inócuo, o espaço, o vazio. Adoro o intransigente, o impaciente, o apressado. Adoro ainda mais o louco, o bobo, o inconteste. Detesto o inocente. Adoro molduras, moluscos, pássaros fugidios. Adoro aproveitar as sobras e adoro os contos bem curtos.