terça-feira, 14 de junho de 2011

Dedicado a uma dedicatória

Dedicado a uma dedicatória

Como surgiram os sebos? Afinal, para isto ocorrer muita gente teve que se desfazer de seus próprios livros. Quem se desfaz de bons livros? – sim, no sebo, à venda, em prateleiras medianamente organizadas, estão bons livros, entre alguns sólidos abacaxis – quem os vende assim, tão baratos?
Fui num, uma vez, que vendia livros por quilo. Qualquer um? perguntei incrédula. Qualquer um, respondeu, desatento, um desinteressado moleque de pouco mais de quinze anos. Não era um sebo autêntico, com livreiros que às vezes deixam tão caras as suas preciosidades, que demonstram apenas não pretender vendê-las.  Foi difícil comprar alguns gramas, escolher entre obscuros e ultrapassados livros sobre economia, negócios e computadores, e nenhum dos desejáveis romances clássicos. Mas entre eles, um, fininho, me saiu quase de graça, A Metamorfose. Ah, sem qualquer pretensão, senti compaixão por Kafka. Então um escritor se mata, passa a vida inquieto com seus pensamentos, muitos angustiantes, e, o resultado disso vai parar sobre uma pilha de livros empoeirados e é vendido por quilo?
Poesia clássica, moderna, romances descartáveis, romances imperdíveis, direito, culinária, artesanato, medicina, eis o bom sebo, numa vibrante anarquia a preços módicos. Mas é preciso cuidado, o hábito de adquiri-los pode afundar o orçamento apertado, mas, acima de tudo, pode preencher uma tarde inteira de pura alegria (contemplativa) em substituição ao tédio urbano. E busco o que não tenho, - e como não tenho! – salvo alguns títulos do ostracismo. Mas tenho especial carinho e predileção – qualquer que seja o autor o a obra – pelos livros com dedicatória.
Já cedi muitas vezes ao ímpeto. A um deles, no entanto, resisti. Mas o impedimento foi monetário. Por ser grosso – suponho – por ter capa nobre, embora de autor obscuro, título idem, era caro.  Fui e voltei até ele várias vezes, pensando se deveria resgatar aquele amor da prateleira. Desisti pelos motivos anunciados e armazenando uma esperança de que algum leitor mais abonado salvasse Sérgio, autor da dedicatória, e Maria, a dedicada, e lhes ofertasse um lar sem a precariedade daquela estante empoeirada daquele sebo com aspecto de esquecido.
Foi assim que abandonei um Sérgio,  uma Maria e sua história, que minha imaginação em poucos minutos, deu diversos contornos. Lembro-me que a dedicatória era longa, trazia ainda um patente arrependimento, um sincero pedido de desculpas, uma vaga esperança de perdão. Por estar à venda, tendo sido, antes, já vendido, conclui que Maria não perdoou Sérgio, mesmo após este lhe dedicar doces palavras e assinar com um comovente “com todo o meu amor...”
Maria, Maria... O que lhe fez Sérgio? Mostrou-se irascível durante a convivência? Abandonou o olhar doce que lhe dedicou nos primeiros anos? Deixou no passado palavras e gestos de conquista e sedução para dedicar-lhe, diuturnamente, palavras secas, atrasos sistemáticos para o jantar, noites ausentes, imprecisão no gesto amoroso, abandono? Ouviu-a calado tantas vezes, deixando sempre a impressão de ser surdo? Deixou de ser calmo, enganou-a com uma paciência inexistente, traiu-a? Ah... se a traiu você tem razão!  Traição é imperdoável. Não há palavra doce, gesto romântico, até mesmo altruísta que combata o ferimento provocado pela traição. Há entre as mulheres um colar de lágrimas que as une em solidariedade silenciosa. Este ato abominável é mais comum do que deveria e cada uma de nós tem, ao menos uma história de traição. O que nos deixa numa situação bem incômoda, pois para isso, quase certo é, traímos também.
Naturalmente não me refiro à traição ordinária, aquela, conjugal. Sair um com outro, outra com um, etc. Necessariamente quando esta ocorre, o que importa já foi traído há muito tempo. Mas o pior, Maria, que talvez você sequer tenha considerado, é que para trairmos quem amamos, antes, muito antes, traímos a nós mesmos. 
Por isso me pergunto: Sérgio, o que você fez à Maria que ela não foi capaz de perdoá-lo? Negligenciou e desrespeitou seu amor por ela? Por quê? Por ela, quem sabe, ter mostrado sua verdadeira face? Deixou de ser uma companheira doce, indulgente, para mostrar-lhe, já que o cotidiano e, principalmente a convivência, favorecem sobremaneira isso, a sua face humana? Será que ela expôs ostensivamente suas mesquinhezas? Ou exibiu certo desdém pela alma masculina? Talvez demonstrado, por mínimos gestos, como um bocejo distraído,  enquanto você conta, com grande ar vitorioso que a produção de parafusos de seu cliente cresceu 0,008% em um ano!
Enfim, ela abandonou o olhar doce que lhe dedicou nos primeiros anos... Deixou para no passado palavras e gestos de conquista e sedução para dedicar-lhe, diuturnamente, palavras secas, imprecisão no gesto amoroso, abandono. Ou falava demais, exageradamente, dando sempre a impressão que as palavras não têm valor ou sentido e que apenas respondem ao impulso de ir se dizendo coisas, dizendo coisas...
Parece mesmo ser assim que o amor se distancia do luar, dos sonetos do Vinícius, das leituras a dois, das palavras roucas, dos murmúrios, da eletricidade do abraço, de um simples pegar na mão que pegava logo fogo no corpo todo. Assim, o amor se distancia da bênção que é amar, ficamos para trás tentando recompor cada passo em falso desse caminhar lento para o abismo. Somos impelidos ao futuro desastrado, incapazes de acertar a temperatura de um amor maltratado, anêmico, terminal.
Ah, Maria, ah, Sérgio, receio terem desistido das horas que se convertiam em segundos, dos silêncios comprometidos, dos segredos espalhados pelos lençóis adocicados, da possibilidade de contemplar a folha em branco ou uma noite enluarada que não se extingue. E permitiram que aquele eloqüente pedido de perdão coubesse espremido em uma estante repleta de livros abandonados.   Nem herdeiros displicentes poderiam cometer tal desatino entregando ao descaso um amor especial.
Mas também posso pensar que aquele livro vulgar podia passear em outra freguesia, já que amealharam o passado, juntaram tudo num saco sem fundo, livraram-se até mesmo dos pedidos de perdões e foram viver uma vida sem artifícios. Uma vida livre de palavras ensaiadas, gestos gastos para, simplesmente, caminharem lado a lado, se possível, desperdiçando o tempo, gastando-o com coisas bem tolas, pois que a vida é tola, o amor é tolo, o passado é tolo e o futuro, então, nem se fala.     

Um comentário:

  1. Olá,
    Uma das coisas materiais que mais tenho dificuldade de me desfazer são os meus livros.
    Praticar o desapego aos livros é uma barreira intransponível. Tenho com eles uma relação de afto muito grande.
    Há três anos quando mudei de residência precisei me desfazer de muitos livros, mas as folhinhas de dedicatória foram arrancadas e devidamente guardadas na caixinha de recordações (Caixinha para ser delicada é quase um baú).
    Muito interessante a abordagem da sua crônica.
    Meu abraço.

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