segunda-feira, 6 de junho de 2011

Protesto Tímido II

Abri o livro de crônicas. Comecei a ler. Protesto Tímido de Fernando Sabino. Assim começa: “Ainda há pouco eu vinha para casa a pé, feliz da minha vida e faltavam dez minutos para meia noite”. Sim, já lera aquela crônica em outra oportunidade e o protesto tímido foi modéstia usual de seu tom: era para ser um protesto retumbante. Mas descansei da história triste que viria a seguir e pensei apenas: poucos anos nos separam, vinte que sejam, trinta, vai e ainda se andava a pé, pelas ruas, dez para meia noite, feliz da vida. Ainda não vivíamos sob o regime do terror, assustados, ressabiados, aterrorizados e, sobretudo, perplexos ante a condição humana que se rende, por este ou aquele motivo, aos seus impulsos mais baixos.
Ainda não era o tempo em que arriscaríamos a vida apenas por descer do carro para abrir o portão da garagem, ainda não arriscaríamos a vida por portarmos parte de nossos – quase sempre parcos – ganhos. Ainda não era o tempo da oportunidade de nos confrontar com o indivíduo marcado, com tamanha amplitude, pela miséria e ausência de perspectivas, a ponto de transformá-lo numa fera com um código de ética incompreensível.
Andar feliz da vida pela rua transformou-se, por fim em aspiração. Acho até que estamos de tal modo embuídos da idéia de nos proteger que, andar feliz da vida pela rua, deixou de ser até mesmo a aspiração. Aspiramos, quando muito sobreviver aos passos sobressaltados, ao caminhar tenso, olhos às costas, ao desejo que o eco da rua vazia seja apenas e tão somente o eco de nossos passos. Tememos o sujeito grandalhão que caminha – talvez temendo por nós – em nossa direção, tememos o andarilho, o jovem de walkmen, o senhor de terno ordinário, o senhor de terno bem talhado, a mulher extravagante, a mulher com bebê, a criança abandonada. Tememos a criança abandonada!
Tememos o atropelado, o enfartado, o ferido, o alquebrado. Tememos. Vamos incorporando preconceitos aos nossos temores e temendo, temendo sempre e cada vez mais, acabamos por temer a solidariedade e nos transformamos no outro lado da natureza gostaríamos de combater. Individualistas, egoístas, alheios.
Nos oásis dos shoppings engolimos sucos de frutas, cafés aromatizados, ingerimos trufas, fast food, sorvetes azuis, compramos sapatos – caros e baratos – roupas – algumas liquidações colocam nos shoppings bolsos inimagináveis, e nas Casas Bahia, podemos comprar uma tv – que logo ficará  obsoleta – por 15 parcelas de 95 reais. O luxo do ar condicionado nos carros popularizou-se, o pára-brisas escureceu e não somos vistos olhando os olhos gulosos, às saídas dos shoppings e hiper-mercados, das crianças ameaçadoras.
Alguns de nós já decorou as estatísticas e prefere não arriscar, evitando dar esmolas ao garoto esfomeado. Alguns de nós já se acostumou à injustiça social e poderá transforma-la em verbete de dicionário de sociologia, eternizando-a. Alguns de nós... Se não todos nós.
Isso me faz lembrar a história de uma conhecida, que foi voluntária numa turma que dava sopa aos mendigos de madrugada. Numa perua, um grupo de mulheres percorria o centro da cidade a noite e enchiam canecas com uma sopa feita por elas mesmas, com recursos de muitas origens. E ela me disse:  “eu queria ajudar e sabe o que me aconteceu? Um daqueles homens passou a mão na minha bunda... Parei. Eles que se lasquem.”  
Eles que se lasquem que a compaixão não agrega compreensão e nossa superioridade não aceita o desrespeito, mesmo daqueles que são completamente desrespeitados.
E só posso repetir os versos de Drumond, que Sabino mencionou e  que inspirou o tom da prosa triste:

A injustiça não se resolve.
A sombra do mundo errado
Murmuraste um protesto tímido.

Acostumei-me a quase tudo. À poluição da cidade, a possibilidade de guerra, ao terrorismo, ao efeito estufa, às praias sujas, às paredes pichadas,  a assimetria do crescimento urbano brasileiro, ao progresso às avessas, aos estandartes dos políticos, a repetição da história, acostumei-me até mesmo a conformar-me.  Acostumei-me. Mesmo me comovendo, ocasionalmente, com uma tragédia localizada em algum estranho lugar – e que vai parar na minha sala de visitas – de um modo geral endureci também. Comovo-me pouco e assumo esse tom no meu cotidiano também para sobreviver.
Mas não me acostumei à miséria infantil. E quando vejo uma criança aborrecendo os comilões e beberrões nos barzinhos da moda, nos faróis das esquinas, na porta da padaria do bairro, muitas vezes tarde da noite eu penso: será que ela não preferiria estar em casa, no tapete da sala, fazendo aquelas chatas lições da escola ou montando um quebra-cabeças, com a mãe na cozinha, preparando um copo de leite quente, que irá aquecer seu corpinho marron, sua cabecinha raspada, suas perninhas tortas, antes de deitar-se, com os irmãos, numa caminha quente com lençóis limpos? Murmurarei, sempre que puder, meu protesto tímido.

Um comentário:

  1. Olá,
    Um prazer ler sua crônica e constatar que alguém pensa como eu. Somos acorrentados pelo medo, mas não podemos deixar que ele nos coloque uma couraça que nos impeça de olhar com generosidade para aqueles diferentes de nós.
    Junto-me a você no seu protesto tímido.
    Semana iluminada procê.
    Meu abraço.

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