sábado, 27 de agosto de 2011

O Mendigo

Soube recentemente. No enterro de papai, há mais de 30 anos, estava presente um mendigo. Não fui ao enterro, tinha onze anos e o mais autêntico horror à cemitérios. Julgaram, naquele dia tão triste que tudo bem, eu não precisava ir. Não fui.
Mas o que podia fazer um mendigo – desse emblemáticos, roupa suja, rota, , pequeno embrulho nas mãos, olhar triste – no enterro de um professor de história que, queira ou não, na época, pertencia a uma provinciana e orgulhosa classe média?
Era uma chuvosa tarde de dezembro, uma semana antes do natal. A pequena cidade de São Joaquim da Barra enterrava seu jovem professor. Último mês de 1967 com o pior, no país, por vir e aquela pequena cidade, entristecida, fechou o comércio, formou enorme cortejo e chorou a partida de um sonhador. Mais que sonhador.  Tratava-se de multiplicador de sonhos.
Entre todos, o sentimento de menosvalia frente a vida ceifada. Era um bom homem que partia, deixando viúva e filhos, sendo duas, gêmeas, tão celebradas pela pequena cidade, de apenas cinco meses: tristeza, sim.
Fora um homem preocupado com as questões sociais do país numa época em que isso significava riscos inequívocos. Até os inimigos políticos, que o acusavam de ser comunista, reconheciam sua doçura, seu caráter irretocável.
Todos choravam e chovia. Uma chuva de verão, que acabada, deixava sobrar aquele céu imensamente azul, profundamente azul e que somente naquela tarde ficaria azul, azul, triste, triste.
Minha tia, irmã de papai, olhava a multidão que lotava o pequeno cemitério daquela cidadezinha qualquer. Olhava, na realidade, para o nada, o nada contido na desolação daquela dor imensa, aflitiva, praticamente insuportável. Olhava para o nada, pois vivia a desolação, a tristeza, representantes diretos da sombra, da penumbra. Ao seu lado, meus avós, inconsoláveis com a perda do filho caçula.
E a chuva fina.
E o céu azul.
E o sol, teimando em aparecer.
E um calor infernal que partia do solo habitado por tantos fantasmas.
E o mendigo, pés no chão, chapéu na mão. Mantinha a cabeça ligeiramente tombada para o lado, o olhar vago e sofrido, a barriga vazia. Era presença invisível que fitava sem piscar o caixão que baixava à sepultura. Ninguém impedia a aproximação do pobre homem que destoava das toaletes do luto.
Minha tia amparava meus avós quando percebeu o desconhecido. Pousou sobre ele um olhar curioso e, em meio a tristeza, pedindo licença, licença, licença, aproximou-se tocou de leve seu braço e perguntou-lhe:
-         Quem é o senhor?
Ele se assustou. Quem poderia ser aquela senhora bonita, de olhos tão tristes, que gentilmente lhe abordava? Quem o chamara de senhor nos últimos tempos? Não respondeu imediatamente. Olhou-a, passou-se um século, ele julgou conveniente ser franco:
-         Eu sou ele. E apontou o túmulo do jovem professor.
Sem entender, minha tia continuou:
- Por favor, nada de brincadeiras, agora. Quem é o senhor?
- Eu sou ele, sim senhora. E ele era eu...
Minha tia não perderia a paciência naquele momento com aquele homem humilde, de olhar triste. Conhecia bem seu irmão.  Creso era senhor de idéias extravagantes, aquela poderia ser apenas mais uma. E aquele mendigo, morador de rua, todo roto, um esmoler, trazia todos os elementos capazes de compor alguma dessas famosas excentricidades do irmão. Em um instante foi tomada por certa simpatia pelo pobre homem. Pareceu-lhe, naquele momento, que aquela imprecisa afirmação retratasse alguma verdade pertencente aos dois. Quis saber mais.
-         Você pode me explicar isso, por favor?
Desta vez o homem foi mais incisivo:
-         O professor era também meu amigo.
O corpo baixara a sepultura, os coveiros terminavam aquele o serviço de cimentar o túmulo como uma prosaica – e por isso ultrajante - rotina. Minha tia decerto expressou sua surpresa. E, enquanto as pessoas se afastavam lentamente do túmulo do jovem professor, ele continuou, com espantosa clareza e em bom português:
- Toda noite eu esperava por ele lá na praça. Ele chegava, quase sempre onze horas da noite, depois das aulas, me acenava sorridente. Mal podia esperar por aqueles momentos em que ele atravessava a rua, ia até o Bar Central, a senhora conhece o Bar Central? Em frente a praça, na rua XV. Ele chegava, comprava dois sanduíches de mortadela e uma garrafa de cerveja. Sentávamos num banco em frente ao bar,  comíamos nosso banquete, tomávamos a cerveja e conversávamos bastante. No começo eu não queria nada de conversa não, eu não gostava de falar da minha vida. Mas ele foi me explicando tudo e me dizia que, quando se sentava ali era para ele ser eu, eu ser ele. Como é que eu vou ser o senhor? Eu perguntava. E ele respondia: do mesmo jeito que eu vou ser você.
Comovida, minha tia só soube perguntar:
- Então, você conseguiu ser ele?
- Claro que consegui! Por que eu descobri que ele só queria mesmo é que fôssemos iguais.
Minha tia amparou-se no túmulo ao lado, segurou a ponta de uma cruz de cimento – aquele homem humilde não mentia: tratava-se realmente seu irmão que tão bem conhecia, admirava, amava. Sorriu ao homem, sentindo, em meio a tanta tristeza, uma doce e breve alegria. O mendigo abaixou a cabeça e afastou-se. Em seguida, voltou-se e disse ainda, à minha tia:
- O professor Creso nunca vai morrer...
Comovida, minha tia aproximou-se do homem, estendeu-lhe a mão.
Acostumados que estamos, aos pobres, dar apenas esmolas, minha tia dedicou-lhe um sincero sorriso e um olhar agradecido. Ele também sorriu, com os olhos rasos d'água.  Meus avós logo quiseram saber quem poderia ser aquele maltrapilho, que a esta altura já suscitava maledicência de alguns. Perguntaram:
-         Que é este homem?
-         Um grande amigo de Creso, talvez seu melhor amigo.
Meus avós não discutiram, não questionaram. Era demasiado doloroso falar no filho recém enterrado. Minha tia, ladeada por seu pai e sua mãe, deixaram o cemitério. Adiante, subindo a rua, avistou ainda o mendigo, que seguia, cabisbaixo. Sob o sol do início da tarde de verão, seguiram adiante, já que não se pode recuar, para o fim daquele triste ano, para o início de outros tantos, definitivamente marcados pela saudade, ora triste, ora pungente, ora doce,ora suave, mas perene. Mas, saudade. 

3 comentários:

  1. Bela HISTORIA de AMOR, respeito ao próximo!!!! Não desprezar um irmão, só porque é pobre!!!!! A vida dá muitas voltas, a lei do retorno é cruel..!!!!!! Parabens Roxana!!!!! Um grande beijo....

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  2. Apaixonante!Belissimo texto!Lindissima licao de vida.
    AMEI!
    bjo gde.

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    1. Lindissimo

      CONVITE

      Primeiro, eu vim ler o seu blogue.
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