Mário
de Andrade voltou a viver em São Paulo em 1941, à Rua Lopes Chaves 546. Voltou, pois esta foi a casa de sua
juventude. Também nessa esquina morreu em fevereiro de 1945, aos 52 anos de
idade.
E hoje, meio século e década depois, eu, que
inadvertidamente já vivi mais que ele, ultrapassei a soleira da porta principal
do belo sobrado, que esbanja amarelo e sobrevive, para o bem da verdade, preservado,
entre o caos das demolições e a vizinhança de concreto e vidro.
Penetrei, cerimoniosamente, entre as paredes do
vestíbulo. Em frente, a porta da cozinha entreaberta, me convidava para espiar
peculiar chão xadrez. Não avancei, era cedo para atingir a sólida cozinha,
centro nervoso das velhas casas, descrição precisa da nostalgia. Desviei o
olhar para a direita. Uma linda escada de madeira escura desvendaria o segundo
andar. Mas, fui seduzida por outra, estreita, escondida, que descia ao porão.
Esta casa tem porão, berrou meu coração! Há de
ser, pensei, um porão digno de Rubem Braga, habitável, porém inabitado. Ou, por
outra, habitado por fantasmas discretos que a noite caminham em vago silêncio
cortado por estalidos que denunciam a assustadora presença de nós mesmos,
perdidos em medos indevassados.
O porão limpo e seco. Mas, jazia abandonado e
solitário piano. Trancado. E meu revelador de momentos sem bateria, nem uma
mísera foto! E o piano trancado!
Se buscava resquícios de Mário de Andrade naquele
porão vazio, claro estava que seria naquele piano... Trancado! Olhei ao redor,
para não me expor ao ridículo, mas queira tocar a madeira, como nos filmes. Piano
feliz dos tempos em que as mãos de Mário, decerto, ainda não tremiam de
tristeza pela perda do irmão, meu Deus, por que sei tanta coisa da vida de
Mário de Andrade e agora vou ficar assim nesta tristezona por que um jovem de
14 anos morreu no final do século XIX, enlutando uma pobre mãe, detonando um
sensível irmão?
Pouso as mãos sobre a tampa do piano, madeira
quente, viva. Nem um mísero grão de poeira para acercar-me do passado que
suspeitei existir naquele instante, naquele lugar improvável. A poeira das
horas ali e alcançaria algum passado, tocaria no passado. Nada. Tudo limpo,
asséptico e, contudo, abandonado. Chega, anuncia despertador do celular. Vejo
as horas: as aulas vão começar.
Subo apressadamente: as aulas seriam na imensa
sala em frente. As portas com pequenas janelas de vidro antecipavam a luz do
mesmo Sol que aqueceu tardes andradianas; a maçaneta emperrou, forcei,
emperrou, forcei. Entro. O pequeno grupo de oito alunos e a jovem professora já
estavam a postos. Mas sala era convite ao devaneio, calma, espera, já já
falaremos de nossa incipiente produção literária, já já falaremos sobre tese do
autor, introitos, sinopses. Sala ampla ampla ampla, clara, clara, clara,
fresca, fresca, fresca, contei oito janelas! O chão, de tábuas largas e claras,
brilhava. Na parede extrema, para instigar minha antropofagia particular, a andradiana, outro
piano.
Tempo, voa, horas, passem, quero o termo desta
discussão interminável do que seja literatura, não, não precisa dizer que
podemos narrar assim, assado. Frito de ansiedade para ver o marfim daquele
teclado e deixa para lá este conceito que literatura é libertadora, é nada, é
solidão e ansiedade, é dor e desconforto, é apagar a luz e caminhar no breu dos
corredores labirínticos e inexplicáveis, é conjugar apenas os verbos
irregulares e defectíveis, é despencar ao chão quando se quer atingir o céu, é
franquear a entrada do diabo enquanto implora a Deus uma conjunção. Ah, não,
nem quero saber que viver de literatura no Brasil é pra poucos, aliás já sei, ah,
é preciso arriscar-se sempre, sair do conforto, acumular musculatura aos textos
passionais. Chega! Calma blogueiros inquietos, calma. Para que precisam destas ideias recortadas? Agora eu só
quero mesmo ver o quintal pela janela dos fundos.
Teria aquele quintal, varal? Roupas claras
dependuradas?
E o piano, pode estar desafinado? Esta sala não
comporta sons comportados da boa manutenção de um piano encalacrado no futuro,
mas só cabível naquele passado que preciso cheirar, tocar, quem sabe uma
minúscula peça de Bach dos meus 12 anos.
Então, para o final do curso faremos um breve
relato sobre a experiência deste, em forma de conto, é preciso já nos
preparamos, aconselha a bela jovem professora que sorri, alheia manifesta da
ocupação inoportuna da casa do poeta.
Todos saem inclusive a boa e velha senhora cega
que aguardava o motorista. Sua história nos comoveu – seus pais escaparam do
holocausto nazista – mas não podia mais fazer-lhe companhia. Ela se despede e
me aposso, finalmente do piano, antigo, nossa, como é antigo, tem dois castiçais
de prata incrustrados em seu tampo.
Arrisco o que vem a mente, um trecho melancólico
de Reverie de Schumann. Discretamente, na sala vazia, esnobo meu parco saber
pianístico, que a mnemória concedeu-me como um prêmio, totalmente dedicado ao fantasma
que suponho visitador daquela esquina, nas horas estáticas.
Entra uma gorda mulher de ar cansado:
- Não pode tocar este piano não! Senhora! Não
pode tocar piano não!
Bem, cai das nuvens – melhor que do terceiro
andar – e me desculpei com fingida educação.
Sem desprezar os despojos dos detalhes que
presumia encontrar naquele espaço, apressei-me. Fui à janela do quintal e nada
poderia estar mais perto do que imaginei. Quintais antigos fazem parte de minha
memória fotográfica. Minha avó viveu num casarão daqueles na hoje degradada rua
Dino Bueno. Era igual o chão com matinhos nascendo no cimento gasto e de
prêmio, a escada escurecida pela implacável pátina do tempo.
Subi oposta escadinha que ia para a cozinha.
Claro, ia servir-me de suculento e gorduroso Peru de Natal. Admito:
lambuzei-me.
Voltei ao vestíbulo: tinha sérias intenções de
subir aquela escada. Ainda me restavam 30 minutos até fechar o órgão público
que aquela casa abriga. Subi lentamente, era preciso pisar leve e retardar o
tempo. No segundo andar o assoalho brilhante faria ecoar meus passos tímidos e
meu respeitoso encontro com seu quarto de vestir (soube pela minúscula tabuleta
à porta), já que estava travestido de vulgar sala de aula. Rejeitei lousa,
carteira e me pus a frente de minhas amigas coisas vividas, passadas, vencidas.
Restava buscar os espaços antes preenchidos por
mesas, poltronas, estantes abarrotadas de alfarrábios injustiçados e, quem
sabe, a porcelana do chá. Esta, poderia estar numa sobre uma mesa redonda embaixo
da janela. Um livro aberto, óculos sobre ele e, perfume de jasmim, aroma
preferido dos fantasmas.
A realidade pode ser cruel e chegar sob a forma
de desafinada ordem: uma voz instável anunciava o fechamento da casa. Suspirei,
passeando pelo sólido passado, que esta boa casa da esquina abriga.
Tenho predileção pelas casas de esquina. Em
geral, são altivas, incorruptíveis. É preciso mais que tijolos e ângulos retos
para dominar a ponta do quarteirão. É necessário domínio da razão, é preciso
ajuntar certezas concretas, fustigar o impertinente destino e destinar vagas
para o abstrato. É também indispensável ter janelas sempre abertas para os
passarinhos. Sem passarinhos, uma casa de esquina pode aniquilar-se. Escadas de
cimento, corrimões confortáveis, canteiros aromatizados por toda espécie de
cálices e corolas são insuficientes sem as doces e pequeninas aves que se
salvaram dos estilingues. Além disso, são belas, as casas de esquina. Afeitas a
lisonja, não omitem sua beleza, esbanjam soberania. Mais ainda, esquinas de poetas.**
* Ia entregar, mesmo não respeitando a forma de conto, este texto na terceira e última aula do curso, mas recuei: literatura é fluida, não cabe nas regras que se pretendeu, ali, assegurar. Impossível domesticar a literatura. Deixemo-nos que se entregue ao desvairismo!
** Oswald de Andrade há de perdoar a distorção total de sua antropofagia.
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