sexta-feira, 25 de abril de 2014

Amar Mário de Andrade, um explícito ato de antropofagia**

Mário de Andrade voltou a viver em São Paulo em 1941, à Rua Lopes Chaves 546. Voltou, pois esta foi a casa de sua juventude. Também nessa esquina morreu em fevereiro de 1945, aos 52 anos de idade.
E hoje, meio século e década depois, eu, que inadvertidamente já vivi mais que ele, ultrapassei a soleira da porta principal do belo sobrado, que esbanja amarelo e sobrevive, para o bem da verdade, preservado, entre o caos das demolições e a vizinhança de concreto e vidro.
Penetrei, cerimoniosamente, entre as paredes do vestíbulo. Em frente, a porta da cozinha entreaberta, me convidava para espiar peculiar chão xadrez. Não avancei, era cedo para atingir a sólida cozinha, centro nervoso das velhas casas, descrição precisa da nostalgia. Desviei o olhar para a direita. Uma linda escada de madeira escura desvendaria o segundo andar. Mas, fui seduzida por outra, estreita, escondida, que descia ao porão.  
Esta casa tem porão, berrou meu coração! Há de ser, pensei, um porão digno de Rubem Braga, habitável, porém inabitado. Ou, por outra, habitado por fantasmas discretos que a noite caminham em vago silêncio cortado por estalidos que denunciam a assustadora presença de nós mesmos, perdidos em medos indevassados.
O porão limpo e seco. Mas, jazia abandonado e solitário piano. Trancado. E meu revelador de momentos sem bateria, nem uma mísera foto! E o piano trancado!
Se buscava resquícios de Mário de Andrade naquele porão vazio, claro estava que seria naquele piano... Trancado! Olhei ao redor, para não me expor ao ridículo, mas queira tocar a madeira, como nos filmes. Piano feliz dos tempos em que as mãos de Mário, decerto, ainda não tremiam de tristeza pela perda do irmão, meu Deus, por que sei tanta coisa da vida de Mário de Andrade e agora vou ficar assim nesta tristezona por que um jovem de 14 anos morreu no final do século XIX, enlutando uma pobre mãe, detonando um sensível irmão?
Pouso as mãos sobre a tampa do piano, madeira quente, viva. Nem um mísero grão de poeira para acercar-me do passado que suspeitei existir naquele instante, naquele lugar improvável. A poeira das horas ali e alcançaria algum passado, tocaria no passado. Nada. Tudo limpo, asséptico e, contudo, abandonado. Chega, anuncia despertador do celular. Vejo as horas: as aulas vão começar.
Subo apressadamente: as aulas seriam na imensa sala em frente. As portas com pequenas janelas de vidro antecipavam a luz do mesmo Sol que aqueceu tardes andradianas; a maçaneta emperrou, forcei, emperrou, forcei. Entro. O pequeno grupo de oito alunos e a jovem professora já estavam a postos. Mas sala era convite ao devaneio, calma, espera, já já falaremos de nossa incipiente produção literária, já já falaremos sobre tese do autor, introitos, sinopses. Sala ampla ampla ampla, clara, clara, clara, fresca, fresca, fresca, contei oito janelas! O chão, de tábuas largas e claras, brilhava. Na parede extrema, para instigar minha antropofagia particular, a andradiana, outro piano.
Tempo, voa, horas, passem, quero o termo desta discussão interminável do que seja literatura, não, não precisa dizer que podemos narrar assim, assado. Frito de ansiedade para ver o marfim daquele teclado e deixa para lá este conceito que literatura é libertadora, é nada, é solidão e ansiedade, é dor e desconforto, é apagar a luz e caminhar no breu dos corredores labirínticos e inexplicáveis, é conjugar apenas os verbos irregulares e defectíveis, é despencar ao chão quando se quer atingir o céu, é franquear a entrada do diabo enquanto implora a Deus uma conjunção. Ah, não, nem quero saber que viver de literatura no Brasil é pra poucos, aliás já sei, ah, é preciso arriscar-se sempre, sair do conforto, acumular musculatura aos textos passionais. Chega! Calma blogueiros inquietos, calma. Para que  precisam destas ideias recortadas? Agora eu só quero mesmo ver o quintal pela janela dos fundos.
Teria aquele quintal, varal? Roupas claras dependuradas?
E o piano, pode estar desafinado? Esta sala não comporta sons comportados da boa manutenção de um piano encalacrado no futuro, mas só cabível naquele passado que preciso cheirar, tocar, quem sabe uma minúscula peça de Bach dos meus 12 anos.
Então, para o final do curso faremos um breve relato sobre a experiência deste, em forma de conto, é preciso já nos preparamos, aconselha a bela jovem professora que sorri, alheia manifesta da ocupação inoportuna da casa do poeta.
Todos saem inclusive a boa e velha senhora cega que aguardava o motorista. Sua história nos comoveu – seus pais escaparam do holocausto nazista – mas não podia mais fazer-lhe companhia. Ela se despede e me aposso, finalmente do piano, antigo, nossa, como é antigo, tem dois castiçais de prata incrustrados em seu tampo.
Arrisco o que vem a mente, um trecho melancólico de Reverie de Schumann. Discretamente, na sala vazia, esnobo meu parco saber pianístico, que a mnemória concedeu-me como um prêmio, totalmente dedicado ao fantasma que suponho visitador daquela esquina, nas horas estáticas.
Entra uma gorda mulher de ar cansado:
- Não pode tocar este piano não! Senhora! Não pode tocar piano não!
Bem, cai das nuvens – melhor que do terceiro andar – e me desculpei com fingida educação.
Sem desprezar os despojos dos detalhes que presumia encontrar naquele espaço, apressei-me. Fui à janela do quintal e nada poderia estar mais perto do que imaginei. Quintais antigos fazem parte de minha memória fotográfica. Minha avó viveu num casarão daqueles na hoje degradada rua Dino Bueno. Era igual o chão com matinhos nascendo no cimento gasto e de prêmio, a escada escurecida pela implacável pátina do tempo.  
Subi oposta escadinha que ia para a cozinha. Claro, ia servir-me de suculento e gorduroso Peru de Natal. Admito: lambuzei-me.
Voltei ao vestíbulo: tinha sérias intenções de subir aquela escada. Ainda me restavam 30 minutos até fechar o órgão público que aquela casa abriga. Subi lentamente, era preciso pisar leve e retardar o tempo. No segundo andar o assoalho brilhante faria ecoar meus passos tímidos e meu respeitoso encontro com seu quarto de vestir (soube pela minúscula tabuleta à porta), já que estava travestido de vulgar sala de aula. Rejeitei lousa, carteira e me pus a frente de minhas amigas coisas vividas, passadas, vencidas.
Restava buscar os espaços antes preenchidos por mesas, poltronas, estantes abarrotadas de alfarrábios injustiçados e, quem sabe, a porcelana do chá. Esta, poderia estar numa sobre uma mesa redonda embaixo da janela. Um livro aberto, óculos sobre ele e, perfume de jasmim, aroma preferido dos fantasmas.
A realidade pode ser cruel e chegar sob a forma de desafinada ordem: uma voz instável anunciava o fechamento da casa. Suspirei, passeando pelo sólido passado, que esta boa casa da esquina abriga.
Tenho predileção pelas casas de esquina. Em geral, são altivas, incorruptíveis. É preciso mais que tijolos e ângulos retos para dominar a ponta do quarteirão. É necessário domínio da razão, é preciso ajuntar certezas concretas, fustigar o impertinente destino e destinar vagas para o abstrato. É também indispensável ter janelas sempre abertas para os passarinhos. Sem passarinhos, uma casa de esquina pode aniquilar-se. Escadas de cimento, corrimões confortáveis, canteiros aromatizados por toda espécie de cálices e corolas são insuficientes sem as doces e pequeninas aves que se salvaram dos estilingues. Além disso, são belas, as casas de esquina. Afeitas a lisonja, não omitem sua beleza, esbanjam soberania. Mais ainda, esquinas de poetas.**


* Ia entregar, mesmo não respeitando a forma de conto, este texto na terceira e última aula do curso, mas recuei: literatura é fluida, não cabe nas regras que se pretendeu, ali, assegurar. Impossível domesticar a literatura. Deixemo-nos que se entregue ao desvairismo!
** Oswald de Andrade há de perdoar a distorção total de sua antropofagia.


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