domingo, 11 de maio de 2014

Caderno de Língua Pátria

Vi um dias desses,  um caderninho, daqueles brochuras, mais largo na base que eram usados, no grupo escolar, somente para “Linguagem” ou Língua Pátria, ou o popular (e desrespeitado) Português de hoje em dia. Sim, pois Português era disciplina do ginásio, aos estudantes da escola primária cabiam estudar Linguagem ou Língua Pátria.  Por que este caderno era o eleito para servir a tal matéria é mais um dos indevassáveis mistérios do grupo escolar do meu tempo. Havia outros, mas não vem ao caso.

Queria falar do caderninho. Quando o vi, na prateleira do supermercado, ao lado dos sofisticados cadernos universitários (usados indistintamente por qualquer reles estudante da 5a série) fiquei tentada: queria possui-lo.
Um outro indevassável mistério. Talvez julgasse que voltaria a escrever como antes, como na longínqua adolescência, que enchia suas páginas em lacrimoso diário. (Comprava este, ordinário, barato e não os enfeitados com flores e corações, destinados aos diários das meninas. Era a textura do papel que me interessava na época, que modificava a letra, eu gostava desse. Ademais a linha longa cabia as frases maiores que exigia uma instintiva diagramação). Assim, fiquei tentada a compra-lo. Acho que foi saudade do passado. Saudade da pracinha do ginásio, dos bons amigos perdidos no tempo, das risadas soltas e despretensiosas, saudade da vida por vir, saudade do futuro que nos sorriria e ainda não fora consumido pelo tempo que transforma esse futuro num túnel negro e tenebroso.
Pulei da infância para a adolescência, sem qualquer motivo. É a confusa saudade de uma quase sexagenária que julga ainda percebe-la desalojada da melancolia. Sim, por que sei que em breve alcançarei este túnel escuro, mas ainda, misteriosamente, não o temo. E recordei-me das professoras que tive, do pátio da escola cheirando a sopa de legumes, das terríveis aulas de religião que me incutiram o temor a Deus e me fizeram crer, seguidos anos, que era pecado roubar biscoitos do armário da cozinha de minha própria casa. Não pude evitar e lembrei-me que naqueles tempos, na pequena São Joaquim da Barra e, certamente em todas as pequenas cidades desse Brasil esquecido por seus governantes, algumas criancinhas iam descalças à escola. Havia em seus semblantes uma resignação envergonhada, os olhos sempre baixos, a vergonha da pobreza explícita. No segundo ano do grupo escolar houve uma menininha descalça que me causava uma indefinível sensação de mal estar. Era dor, mas eu era muito pequena para saber que a pobreza doía. Ela era magricela, cabelos marrons desalinhados. Trazia sempre o nariz escorrendo, e, na expressão, ausência de alegria. Vestia o avental branco do uniforme, feito de saco. Nas mãos um caderno fino, encardido e desencapado, um lápis e uma borracha. Não tinha as malas de couro com estojos de lápis de cor que todos os colegas ostentavam. Exposta na primeira carteira da fila, posto que fosse miúda, expunha as vísceras de um cadáver decomposto, o descaso, o abandono. Eu logo atrás podia ver suas solas imundas e perninhas tortas, sempre em movimentos ritmados. Nosso turno era de três horas apenas, não havia intervalo para lanche, mas apenas sopa para as crianças da Caixa. Esta locução que nunca tive a capacidade de compreender levava esta raquítica garotinha a responder uma pequena chamada e entrar em fila para receber uma colher das mãos da professora. Iam e vinham rapidinho, enquanto os alimentados continuavam decorando a tabuada.
Da menininha descalça não lembro o nome, mas guardo algumas lembranças nítidas. Às vezes ela, timidamente aproximava-se das crianças que corriam pelo pátio, brincando, esperando que alguém a convidasse, na verdade, autorizasse sua entrada na brincadeira. Sua humilde espreita nem era percebida, mas as crianças podem ser generosas, às vezes, e logo alguém a incluía na brincadeira. Pronto. Ela sorria, limpava o nariz com o braço direito, vez ou outra gargalhava até ficar vermelha. Lembro-me como a melhor lembrança daquela menininha triste, de sua gargalhada até as lágrimas.  Mas recordo-me: não concluiu sequer o segundo ano. Fez todo o catecismo, mas tampouco esteve presente no dia da Primeira Comunhão.
Meu pensamento romântico me fazia crer que escolheu viver feliz, entre jabuticabeiras, entre os seus. Meu cético pai, no entanto, lamentou a sorte da menina magrinha supondo que fosse, sem escalas, dos bancos escolares para o roçado, para a enxada. Mas, posso imaginar que cresceu, apaixonou-se por um rapaz forte que carpia a terra, teve muitos filhos por que é doce pensar assim, assim quero pensar.

E tanta reminiscência por causa de um caderno de linguagem, que acabei por não comprar! Achei que talvez o rapaz do caixa estranhasse uma senhora pagar por aquele caderninho, talvez  julgasse que eu quisesse apenas voltar a ser criança, coisa que não me agrada, que, se pudesse escolher ser qualquer coisa, criança é que não seria, ah, não, tão instável e medrosa, com tantas perdas por vir. Se pudesse escolher ser qualquer coisa, talvez seguisse o desejo do mestre Braga e ser passarinho. Mas, não sei se tenho alma de passarinho, talvez pudesse virar coruja para não temer, jamais, a noite. Mas escolhas por escolhas, poderia me permitir ficar feito criança em loja de brinquedo ou vitrine de doces, entre tantas possibilidades escolher nenhuma e entregar-me a ser, quem sabe, um lago sereno... Melhor ainda chuva, para ser ainda mais breve neste mundo... 

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