quinta-feira, 30 de abril de 2015

A Festa

           De natureza tímida e poucos amigos, estranhei o convite para a festa de aniversário do meu vizinho de andar, com o qual, eventualmente, encontro no elevador e que não deixa dúvida: é tão tímido quanto eu. O rapaz sequer permite que uma eventual beleza seja revelada, pois vive de cabeça baixa e, mesmo quando nos encontramos descarregando compras, por exemplo, e ele, vencendo a timidez me oferece ajuda (que eu, vencida pela minha timidez, recuso), nem assim, consigo ver direito seu rosto. Cheguei a suspeitar que seu queixo fosse colado – por um defeito congênito - ao esterno.
            Nos últimos dezoito meses temos nos encontrado, ocasionalmente, que habitamos o mesmo decadente edifício. Ele se mudou desde esse tempo, eu moro aqui desde que nasci. Aliás, mamãe também. E vovó, desde sua desastrada juventude. Moramos as três no amplo quarto e sala que viveu, conforme diz vovó, melhores tempos. Somos três gerações de enjeitadas que sobrevivem por puro instinto e teimosia.
            Vovó, em 1929 foi abandonada, grávida, pelo noivo que, ao que parece, não ficou satisfeito nem com o produto nem com o dote (meu bisavô estava arruinado – vide o ano, ele era fazendeiro de café.)
            Vovó Celina – este é seu nomecuja desobediência a todos os valores da época salientava-se a cada dia -, não podia continuar mais naquela casa, naquela cidade, dando o mau exemplo para a leva de jovenzinhas casadoiras que se afilavam. Bauru, menos ainda, poderia tolerar tal insubordinação e não tardaria que essa jovem - que não era única – fosse alvo dos mais ofensivos falatórios. Acresce-se a isso o fato de meu bisavô, que por conta óbvias restrições orçamentárias, andar com a burra fechada para a igreja. O Padre, impaciente e insatisfeito, estava prestes a proibir todas as filhas de Maria da família Borges Siqueira de freqüentarem a igreja. Sim, argumentou o Padre, se proibisse apenas Celina, seria ainda pior.
            O motivo ninguém sabia, mas o fato é que meu bisavô mantinha um apartamento quarto e sala em São Paulo, devidamente mobiliado e equipado para ser prontamente ocupado. Móveis sólidos, cama de casal com colchão de mola, uma penteadeira cuja superfície era coberta de perfumes fortes e doces e na sala, para conforto geral, um sofá também de molas, um moderníssimo rádio e uma linda mesa de amendoim que servia para refeições e seu belo tampo marchetado, para um silencioso, longo e desafiante jogo de xadrez. Coisa de gente rica, coisas, como diz vovó, custosas. Nas paredes, reproduções de lânguidas criaturas em bordéis parisienses, em tons de rouge, algumas assinadas por Tolouse Lautrec.
            Era uma extravagância e tanto para quem se deslocava a São Paulo apenas duas ou três vezes ao ano. Sua calada esposa, minha bisavó Escolástica, que me conste, ignorava a existência de tal luxo e sequer pusera os pés ali, em toda a sua existência. Ademais odiava São Paulo.
            Mas lá estava, disponível e Celina deveria mudar-se imediatamente, ter o nenê, etc. Nesse etc, consta, era para dar o filho para alguém criar, voltar a viver em Bauru, essas coisas, coisas essas que não aconteceram.
            Vovó aqui chegou, vinda de trem, com duas malas de couro poídas, algum dinheiro, sua barriga que prosperava dia a dia e uma tia solteirona com seus “avançados” trinta anos. Os propósitos da vinda da tia Arminda eram fazer companhia a jovem, cuidar que ela não fizesse nenhuma bobagem (posto que só chorava) e espalhar pela vizinhança a história  de que aquela jovem grávida, perdera o marido numa grave doença e longa agonia. Tia Arminda fora a escolhida não apenas por sua solteirice lhe dar tempo de sobra. Era talhada para rechear a mentira de detalhes e exageros que lhe desse a devida verossimilhança. E tia Arminda saiu-se bem na empreitada, pois gostava muito desse negócio de espalhar notícias (se fossem falsas, melhor ainda).
            Vovó enviuvou sem casar e enlutou então, a precoce e inadequada gravidez. Penso que esse luto foi sua verdadeira catarse e matou, vestida de negro, seu amor. Um antigo retrato do jovem (e belo) namorado foi estrategicamente colocado sobre o itajer, para identificar o homem da farsa da tia Arminda. E lá ficou como um fantasma para recordar a cada manhã e instante e a cada uma de nós que os homens não são confiáveis.
            Ao lado do porta-retrato, uma vela de azeite, permanentemente acesa, para o defunto.  Lá está meu avô, com olhos distantes e tristes, num terno que parece apertado e mal passado. Tinha lábios finos e um meio sorriso deu vida ao retrato tirado por um lambe-lambe de Aparecida do Norte. Vovó, vez ou outra, observa o retrato e comenta com amargura: morreu pobre, o infeliz. Vovô, esse do retrato, cujo nome nessa casa ninguém menciona, mas sei de fonte segura que é nada mais nada menos que um prosaico e detestável Benedito, morreu aos quarenta anos, vítima de uma malária que contraiu num garimpo, numa de suas malogradas tentativas de enriquecer. Notícias, vindas de sei onde, trazidas por nem sei quem, nem mesmo se é verdade, sabemos. Pode ser que o homem esteja vivo, por ai ainda, viril (ainda não teria feito oitenta anos), quem sabe fazendo novos bastardos.
            Bem, minha mãe nasceu num sábado de mau tempo e vovó, sempre excêntrica, talvez quisesse chamá-la Chuva, Nuvem, Trovão. Mas batizou-a Sol. E ainda dizia para os poucos familiares que ousaram visitá-la em segredo: É linda, uma deusa asteca. Sol.
            Parece que meu avô era mexicano, filho ou neto de, enfim, um espécime e tanto, que foi atraído por vovó que também não era de se jogar fora. Engordou com os anos. Já Sol, a deusa, sua filha, revelou-se uma mortal comum, dizendo francamente, comum demais.
            Antes de mamãe completar um ano meu bisavô morreu, sem conhecer a neta nem perdoar a filha. Era vida real e não novela, assim foi. A situação financeira da família piorou com morte do progenitor, mas para minha avó Celina até que foi bom, pois julgaram por bem lhe deixar como herança o apartamento em que já vivia.
            Já eu, cheguei a este mundo trinta e nove anos depois, em vinte de agosto de 1968. Apesar de um mês antes, recebi o nome de Primavera. Mamãe, não sei dizer por que,  vivia com o olhar no mundo do hemisfério norte e como nasci no dia em que a Primavera de Praga sucumbiu, ela quis alongá-la, em mim. Vinte e um de agosto de 1968... Cheguei a este mundo juntamente com os tanques soviéticos em Praga. Mamãe quis incluir Praga em meu nome, mas vovó disse que isso não, absolutamente, loucura tem limites, que, em bom português Praga quer dizer coisa ruim. Leu, solenemente o verbete, na enfermaria da Maternidade São Paulo: “praga, do latim plaga, imprecação de males contra alguém,  calamidade, flagelo, grande abundância de coisas desagradáveis, inoportunas, nocivas”.
            E completou, com seu vozerio de espantar valentão: Exceto se deseja homenagear aquela praga de homem que lhe deixou essa filha...
            Primavera Ramos eis como ficou meu nome, contemplando apenas o sobrenome da ascendência feminina  já que uma certa antipatia aos homens germinou em solo fértil, naquela micro-família, ao longo dos anos. Vovó nunca mais teve um mísero namorado e aquele apartamento era freqüentado apenas por mulheres que lá iam para experimentar seus vestidos (vovó sobreviveu costurando para fora, como se dizia). Exceção ao zelador que às vezes ia ver encanamento, trocar borrachinhas de torneiras, consertar o aquecedor, essas coisas, nenhum ser do sexo masculino avançava por nossos domínios. Aquelas paredes só testemunharam vidas femininas e vovó desencorajou mamãe a se relacionar com rapazes e mamãe, dos homens, só sentia pavor.
            Exceção feita ao jovem que vivia à porta do bar da esquina da av. Ipiranga com a av. São João. Ao andar pela avenida, na volta das compras ou raro passeio ao cinema e à igreja, mamãe também colava o queixo no osso esterno e não podia, ainda que São Paulo dispusesse delas, ver estrelas.
            Mas a natureza tem poder e a natureza de mamãe gritava, urrava, por satisfazer suas necessidades e ela cedeu ao calor que somente aquele olhar lhe causava, todas as tardes, na volta da padaria. Mamãe aos trinta e oito anos ainda não se dedicara de corpo e alma aos prazeres da boa mesa, deste modo, mantinha, digamos assim, um atraente invólucro para sua alma pura e simples.
            Já ele era metido a besta, a valentão e até mesmo a bonitão (afirma mamãe que ele era lindo, mas as fotos desmentem esta visão onírica que ela jamais abdicou). Ele tocava guitarra elétrica, tinha os cabelos longos, os lábios grossos, usava calças de brim dobradas na bainha e camisa de mangas curtas, apertadas em bíceps medianamente desenvolvidos.
            Cantava. Tinha a voz igualzinha a de Elvis Presley e mamãe passou a suspirar por aquele rosto quase selvagem e passou a passar diariamente naquela esquina, pontualmente às vinte horas, exatamente no horário em que aquele rapaz tragava seu sagrado conhaque antes de integrar-se nos bares da noite de então, entoando suas canções melosas em troca de alguns dinheiros.
            Revelo o nome: Eurico Cardoso, nome antigo, do avô, que ele trocou pelo nome artístico de Wanderley Cardoso (homenagem ao irmão que nasceu ao morrer). Foi um desconsolo quando teve que trocar de nome, pois tinha um outro cantor fazendo muito sucesso ai, com esse nome. Resignou-se e impôs ainda mais pompa: Wesley Costa, esse sim, muito mais bonito, e sonoro, e promissor. 
            Mas tantos nomes serviram apenas para facilitar suas fugas, para ajudá-lo a sumir na poeira, pois mamãe nem sabia por quem procurar e em cada lugar que ela indagava, surgiam vários homens, nenhum paradeiro, mais dúvidas que certezas. Ela queria somente que ele me conhecesse, que se ele me visse, que, linda como eu era, ia querer ser pai, casar, morar junto, amar sem medida, então saía comigo nos braços, na madrugada, bar em bar, todos a olhavam com desdém até que uma puta, dessas bem putas mesmo, cara de puta, roupa de puta, sapato de puta, etc, a chamou num canto e disse:
            - Beibe, gueralti, que esse homem que você está procurando não cria raiz e nem põe água em fervura. Já era, ele se foi e disse que nunca mais vai voltar.
            Nunca soube, por que mamãe nunca falou sobre isso, se aquela tristeza profunda que ela carrega no olhar é saudade daquele amor, daquele homem que a seduziu, virgem aos 38 anos, nunca amada, nunca tocada, sem destino, e que se deixou conduzir por aquela escada circular, que ia subindo, subindo, achando a chave no bolso, errando a fechadura, bebendo do gargalo o conhaque português – que aquela noite tinha que ser conhaque bom, de preferência português – a porta fechando, o frio da janela aberta, a cidade silenciosa e o pequeno apartamento, feio, tacos soltos, roupas jogadas, louças sujas, e sua ventura, sua maior ventura. Havia um som distante, naquela noite, a primeira de uma série de quatro ou cinco, que mamãe não gosta de ouvir até hoje: sirene de bombeiro que, soube depois, na manhã seguinte, outro lugar também ficara em chamas, ali perto. A sirene tocou, tocou, tocou, tocou.
            Depois dessas noites incandescentes, conforme me antecipei e revelei, ele passou a ignorá-la. Em seguida, sumiu. Aí, ela ia lá, batia na porta, a vizinha abria a porta do lado, dizia que ele não estava, tinha viajado. Seis meses depois da turnê ela conseguiu finalmente ficar frente a frente com aqueles mesmos olhos, aqueles mesmos cabelos cheirando brilhantina, a porta semi-aberta e uma voz feminina lá no fundo que o chamava, insistentemente. Sua barriga denunciava a avançada gravidez e ele disse apenas:
            E eu com isso?
            Foi mesmo uma frase assim, meio assim, talvez um pouquinho diferente, mas não muito e a essência, o sentido, era esse mesmo. Esse homem, minha neta, contou-me um dia vovó Celina, quanto mais sua mãe insistia para conversar, mais ele ficava nervoso, e esse homem, de repente, deu-lhe um tapa e disse: suma daqui. Fora. Gueralti. Ela veio, pela av. Ipiranga, aos tropeços, carregando uma dor tão profunda que me revelou certa hora: Mãe, não vou aguentar.
            Mas aguentou como ordinariamente ocorre nas tragédias ainda mais trágicas, e nunca mais viu seu amor, o guitarrista que cantava...
            Você tem os olhos deles, minha neta, disse minha avó. E continuou: Mas o que fazer? Ele queria o Sol, mas sua mãe, chamada Sol, é nuvem, é chuva, é trovão.
            Como eu fui criada por essas duas mulheres, dou-me por contente em ser apenas tímida.
            E agora ao fato: a festa é à fantasia! 
Qualquer festa me apavora... À fantasia então, não podia sequer pensar... Mas ali está o convite, tentador, pois também as festas são tentadoras. Ali está o convite, sobre a mesa de jantar, entre a cesta de ovos, o saquinho de pão fresquinho, sobre a toalhinha de crochê, que encobre o marchetado xadrez. Ali está o convite sobrescrito com letra elegante meu nome: Primavera Ramos.
            Vó, eu disse, ele não falou nada, só deixou o convite?
            Parece que sim, ela não se lembrava bem, que minha avó não consegue lembrar de nada, só de sua infância, mas era isso, o rapaz tocou a campainha, ela mal viu o seu rosto, ele entregou a ela o convite, mudo, não disse nada. Isso mesmo, nada.
            Abri o envelope: local e data, sábado, no seu apartamento mesmo, eu não precisava nem sair à rua, tomar um táxi, nada, ia ter uma festa à fantasia, na porta ao lado. Depois de muito relutar, acolhi os conselhos e resolvi enfrentar a festa. Costurar a fantasia ia ser moleza com duas profissionais em casa. As opções eram muitas, mas eu, num rasgo de atrevimento, desejei uma fantasia de odalisca. Odalisca! De onde será que tirei esta ideia tão estúpida? Mas depois da aprovação das minhas gestoras, fiquei pendurada naquele detestável pêndulo: se elas aprovaram... Melhor não. Mas se resistir... Melhor sim.
            Embarcamos numa fantasia adicional que era projetar, escolher e confeccionar minha roupa. Os dilemas se sucediam já que minha vó era ousada e minha mãe, prudente – que sua única imprudência deixou marcas profundas. Deste modo por pouco minha fantasia não resulta numa indumentária esquisita uma odalisca arrependida, pudica, prestes a optar por uma burca.
Chegou a grande noite. Passei horas me arrumando e não me lembro de ter enfrentado, antes, situação tão adversa: assim que fiquei pronta – e linda segundo as opiniões tendenciosas – parecia impossível vencer minha timidez e atravessar aquele pequeno hall e ir àquela festa. Vovó repetia a todo instante que eu estava linda, o que há, até parece que nunca foi a uma festa!
            Vó! Pois nunca fui mesmo!
            Ela me olhou com seu olhar indecifrável e disse: Nossa... É mesmo. Abaixe essa saia, deixe aparecer esta barriga e vá!
Eu não me movia e vovó bradou:
Sol, faça alguma coisa pela Primavera!
            Sol, ou seja, minha mãe fumava pensativa, esticada no sofá. Olhava para as unhas, para mim e seu olhar opaco, mas sempre enigmático, pousou sobre os meus. Para mim, pura censura, fica que horror, aonde você pensa que vai com esta roupa horrível, etc. Mamãe era capaz de achar feia a roupa que acabara de achar linda.
Fez-se apenas silêncio. E vovó repetiu, enfática, patética:
Sol, faça alguma coisa pela Primavera! Você precisa agira agora!
            Sol não se movia. Vovó explicou tudo, que eu estava com medo de atravessar aquele corredor, ir à festa, que eu, veja bem, eu, não sabia que estava linda, que ia ser uma festa inesquecível. Vovó Celina, a sonhadora. Mamãe olhou-me novamente e falou, em tom molenga:
            Larga a mão de ser enrolada, cheia de drama, Primavera. Vai logo que eu quero mesmo é ir pra cama. Mas suba um pouco essa saia e vá. Esconde um pouco essa barriga.  Que horas são?
            Quase dez, meu Deus, chegou mesmo a hora da festa, mais um pouco e me atrasaria e isso também não se faz com um rapaz tão tímido, tímido como eu!
Não sei exatamente de onde veio a decisão. Mas achei que sim, tudo pronto, eu ia! E, corajosamente acertei o bustiê, abaixei mais um pouco a saia de sete véus, mordi os lábios e espalhei batom nas faces, vovó espirrou mais um pouco de Dune, perfume doce, quente e segurei a maçaneta da porta. Abri, sai ao hall vazio e escuro. Acendi a luz, olhei em torno: apenas as quatro portas escuras, testemunhas de minha vida árida, insípida. Virei-me, mas vovó não esperou. Fechou a porta atrás de mim. Vamos, vamos! E atravessei o hall, como uma peregrina, que a cada passo redimia dores e pecados.
            Toquei a campainha e a porta abriu-se. Atendeu-me Drácula. Olhei-o, parecia um jovem bem apessoado, não fosse a dentadura de plástico, umas manchas vermelhas ao redor da boca, uma sombra escura embaixo dos olhos. Drácula? Mas precisava ser Drácula? Quis rir, mas sou de natural modéstia, não ia arrojar-me na merecida gargalhada para meu anfitrião. Restou o gesto tímido, nervoso. Restou, com seus dentes afiados, um sorriso sem jeito e um constrangimento maior que o meu. Disse, finalmente, como se uma batata quente estivesse entredentes:
            Oi, entre... Você é a primeira a chegar...
            Sem graça, por motivos vários, sem saber o que fazer, respondi:
            Ah... Então acho melhor eu ir... Volto depois...
            E o pobre moço, que assim como eu não sabia agir, respondeu:
            Ah... Então tá...

            Virei as costas e voltei para casa. Não, não voltei à festa, que tampouco aconteceu, pois fui a primeira e a única a chegar.

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