segunda-feira, 13 de abril de 2015

Horas silenciosas

Só lamento que o velho relógio de parede, que foi comprado por meu pai, por lá, 1966 seja mudo: modernidades da época. Que ele não funcione bem, marcando horas de lugares e tempos distantes, que sequer servem de mera referência, não importa. Importa que seja mudo, quisera que fosse sonoro para que pudesse me lembrar, nas horas mais inesperadas, do meu pai, minha casa, São Joaquim da Barra, o chão de cimento, a reforma, as jabuticabeiras do quintal, as sombras das manhãs que buscávamos no caminho da escola, eu agarrada a sua cintura, as vozes na rua.
Mas, foi feito mudo. Era uma época de estranha estética, 1966.  Para ser moderno, abominava-se o antigo; era preciso rechaça-lo como a um primo pobre, um mau quadro, um café ralo. Sucumbiram pequenas casas das ruas transversais, ainda que em sua fachada, sob a beira, em alto relevo, exibissem seus antigos anos; Sucumbiram capelas, igrejas matrizes, calçadas de pedra, bancos de jardim centenários. Para o antigo, que pode ser soturno, perturbador e ainda assim reconfortante, restava  nas casas da avós, respectivamente carrilhão e relógio cuco, que entoavam o canto das horas e cortavam o silêncio da noite em cama emprestada.  Voltemos ao relógio mudo.
Meu pai, pouco afeito a compras de objetos para casa – aliás, pouco afeito a quaisquer compras de quaisquer supérfluos, não por desapego a estes, mas por impossibilidade financeira – chegou um dia com aquele prodigioso equipamento, um híbrido com pêndulo e pilha.  Escolheu um lugar na parede da sala de jantar, bateu o prego, pendurou o relógio de madeira. Suspeito que a compra tenha sido feita por sua incapacidade visceral de dizer não, particularmente a estranhos. E um deles o convenceu, por sua necessidade premente em vender um, pelo menos um, de seus vários modelos, tinha mulher e filhos. Meu pai não era um homem passional, menos ainda sentimental, mas de algum modo não resistiu à cantilena especiosa. Não podia corresponder ao desejo de meu pai, possuir aquele equipamento, apesar de útil. Seu senso prático o traiu, a casa dispunha de um relógio despertador, se alguém precisasse saber as horas, bastava caminhar até o quarto, era autêntico desperdício de reservas ou endividamento, aquele silencioso relógio que ficou, por anos, na mesma parede.
O pior é que aquele equipamento caro e comprado a contragosto, jamais funcionou direito. Papai dizia, o vendedor explicara: o relógio precisava estar sempre reto, retíssimo ou adiantaria, ou atrasaria. Não surgiu dai a frase, mas vovô, nas visitas mensais à nossa casa, vivia a repetir: relógio que atrasa não adianta.
Não atrasava nunca: adiantava. Vivia invadindo o futuro com uma avidez desconcertante. A tese que prevaleceu e que garantiu a permanência deste equivocado marcador de tempo preso à parede era que sim, melhor adiantar, afinal deste modo ninguém se atrasaria a qualquer compromisso. Nesse ponto, para mim, sempre atrasada, ele adiantava bem. Mamãe, pacientemente, acertava as horas, tentava deixa-lo reto e vivia nos enganando, dizendo que o relógio vivia seu destino de pontualidade. Ao me guiar por aquele relógio instável, mas sempre a frente do tempo, consegui levar minha vida escolar sem graves retardamentos.
Papai morreu logo depois, um ano, se muito. E o relógio foi alçado a significados insuspeitos: fez-se belo com sua madeira marfim e vidro bisotado. Fez-se presente, para contrapor àquela dolorosa ausência. Fez-se amigo das horas, ora perdidas, frouxas, cansadas. Fez-se joia, falsa a bem dos fatos nus, crus, mas joia que trazia a lembrança mais rara e cara daqueles anos caprichosamente dolorosos.
Lembro-me de uma tarde com minha avó paterna, perdida em lamentos, sentar-se à mesa de nossa pequena sala de jantar, e ali permanecer longos minutos,  olhando as horas, ou melhor, o monumento às horas. Vovó não queria deixar aquele momento escapar, viveu aquele tempo desenclaustrado, transformado em eternidade, em comunhão com o filho que partira antes dela. Segurei suas mãos geladas e avisei que vovô a chamava para o lanche. Ela se levantou sem resistência, mas antes de deixar a sala, atravessar uma enorme varanda de piso encerado rumo a mesa posta em nossa pequena  cozinha,  olhou a parede entristecida. E disse: este relógio podia parar. Parar para sempre.
Revelou-se aquela diáfana presença: vovó quisera naquela hora ser ausência. A vida empobrecera e relógio ganhara relevância, com um significado anteriormente insondável: era o pai, o marido, o filho, silencioso, que sondava nossas horas com a seriedade de uma presença que nos domava, era montanha, era terra, era céu, água, ar.
Os anos, quarenta praticamente, trouxe o relógio para minha parede, quando mamãe enjoou, definitivamente, daquelas horas erradas, mortas.

Aqui permanece silencioso, adiantando-se para o futuro, pois sempre foi sua maior vocação. Pena ser mudo, pois houvesse aqueles sons peculiares dos relógios e eu o ouviria como uma prece, pontuando meu dia em quarto de horas. Um clamor ao passado, afinal, som de infância pode ser uma lembrança doce.

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