Só lamento que o velho relógio de parede, que foi comprado
por meu pai, por lá, 1966 seja mudo: modernidades da época. Que ele não
funcione bem, marcando horas de lugares e tempos distantes, que sequer servem
de mera referência, não importa. Importa que seja mudo, quisera que fosse
sonoro para que pudesse me lembrar, nas horas mais inesperadas, do meu pai,
minha casa, São Joaquim da Barra, o chão de cimento, a reforma, as jabuticabeiras
do quintal, as sombras das manhãs que buscávamos no caminho da escola, eu
agarrada a sua cintura, as vozes na rua.
Mas, foi feito mudo. Era uma época de estranha estética,
1966. Para ser moderno, abominava-se o
antigo; era preciso rechaça-lo como a um primo pobre, um mau quadro, um café
ralo. Sucumbiram pequenas casas das ruas transversais, ainda que em sua
fachada, sob a beira, em alto relevo, exibissem seus antigos anos; Sucumbiram
capelas, igrejas matrizes, calçadas de pedra, bancos de jardim centenários. Para
o antigo, que pode ser soturno, perturbador e ainda assim reconfortante, restava
nas casas da avós, respectivamente
carrilhão e relógio cuco, que entoavam o canto das horas e cortavam o silêncio
da noite em cama emprestada. Voltemos ao
relógio mudo.
Meu pai, pouco afeito a compras de objetos para casa –
aliás, pouco afeito a quaisquer compras de quaisquer supérfluos, não por
desapego a estes, mas por impossibilidade financeira – chegou um dia com aquele
prodigioso equipamento, um híbrido com pêndulo e pilha. Escolheu um lugar na parede da sala de
jantar, bateu o prego, pendurou o relógio de madeira. Suspeito que a compra
tenha sido feita por sua incapacidade visceral de dizer não, particularmente a
estranhos. E um deles o convenceu, por sua necessidade premente em vender um,
pelo menos um, de seus vários modelos, tinha mulher e filhos. Meu pai não era
um homem passional, menos ainda sentimental, mas de algum modo não resistiu à cantilena
especiosa. Não podia corresponder ao desejo de meu pai, possuir aquele
equipamento, apesar de útil. Seu senso prático o traiu, a casa dispunha de um
relógio despertador, se alguém precisasse saber as horas, bastava caminhar até
o quarto, era autêntico desperdício de reservas ou endividamento, aquele
silencioso relógio que ficou, por anos, na mesma parede.
O
pior é que aquele equipamento caro e comprado a contragosto, jamais funcionou
direito. Papai dizia, o vendedor explicara: o relógio precisava estar sempre
reto, retíssimo ou adiantaria, ou atrasaria. Não surgiu dai a frase, mas vovô,
nas visitas mensais à nossa casa, vivia a repetir: relógio que atrasa não
adianta.
Não
atrasava nunca: adiantava. Vivia invadindo o futuro com uma avidez
desconcertante. A tese que prevaleceu e que garantiu a permanência deste equivocado
marcador de tempo preso à parede era que sim, melhor adiantar, afinal deste modo
ninguém se atrasaria a qualquer compromisso. Nesse ponto, para mim, sempre
atrasada, ele adiantava bem. Mamãe, pacientemente, acertava as horas, tentava
deixa-lo reto e vivia nos enganando, dizendo que o relógio vivia seu destino de
pontualidade. Ao me guiar por aquele relógio instável, mas sempre a frente do
tempo, consegui levar minha vida escolar sem graves retardamentos.
Papai
morreu logo depois, um ano, se muito. E o relógio foi alçado a significados
insuspeitos: fez-se belo com sua madeira marfim e vidro bisotado. Fez-se presente,
para contrapor àquela dolorosa ausência. Fez-se amigo das horas, ora perdidas,
frouxas, cansadas. Fez-se joia, falsa a bem dos fatos nus, crus, mas joia que
trazia a lembrança mais rara e cara daqueles anos caprichosamente dolorosos.
Lembro-me
de uma tarde com minha avó paterna, perdida em lamentos, sentar-se à mesa de
nossa pequena sala de jantar, e ali permanecer longos minutos, olhando as horas, ou melhor, o monumento às
horas. Vovó não queria deixar aquele momento escapar, viveu aquele tempo desenclaustrado, transformado em eternidade, em comunhão com o filho que
partira antes dela. Segurei suas mãos geladas e avisei que vovô a chamava para
o lanche. Ela se levantou sem resistência, mas antes de deixar a sala,
atravessar uma enorme varanda de piso encerado rumo a mesa posta em nossa
pequena cozinha, olhou a parede entristecida. E disse: este
relógio podia parar. Parar para sempre.
Revelou-se
aquela diáfana presença: vovó quisera naquela hora ser ausência. A
vida empobrecera e relógio ganhara relevância, com um significado anteriormente
insondável: era o pai, o marido, o filho, silencioso, que sondava nossas horas com
a seriedade de uma presença que nos domava, era montanha, era terra, era céu, água,
ar.
Os
anos, quarenta praticamente, trouxe o relógio para minha parede, quando mamãe
enjoou, definitivamente, daquelas horas erradas, mortas.
Aqui
permanece silencioso, adiantando-se para o futuro, pois sempre foi sua maior vocação.
Pena ser mudo, pois houvesse aqueles sons peculiares dos relógios e eu o ouviria
como uma prece, pontuando meu dia em quarto de horas. Um clamor ao passado,
afinal, som de infância pode ser uma lembrança doce.
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