Este
ano as uvas serão dos pássaros
Memórias de uma mulher que
nunca deixou seus sonhos para trás.
Epígrafe:
O tempo parece vilão. Mas é
apenas tempo,
templo que encerra nossa
existência.
Prefácio
Em 29 de novembro de 2.006 vovó teria completado 100 anos
se não tivesse morrido aos 92*. Ela desejou chegar aos 100, falava muito sobre
isso. Partiu, contrariada. Desconheço alguém que partisse mais contrariado para
o outro lado.
Vovó foi também
uma figura central (e controvertida) em nossa família e transmitiu-nos,
continuamente, seu maior legado: suas idéias. Talvez nem pensasse que as
tivesse. Elas – as idéias – se apresentavam naturalmente, como a chuva, o sol,
o equinócio. E eram simples.
Se eu, ou qualquer um lhe dissesse: Dona Sebastiana,
a senhora tem boas idéias! Ela, provavelmente se surpreenderia e talvez
respondesse, simplesmente: É mesmo?
Acredito também que se minha avó tivesse vivido num
ambiente da efervescência cultural do movimento modernista de São Paulo, por
exemplo, talvez tivesse desenvolvido suas habilidades, seus talentos, abafados
pela vida dura do campo, pelo ambiente sisudo das casas dos majores, coronéis,
pais, padrastos, maridos produtores de café do início do século XX.
Assim, em vez experimentar o pensamento livre,
exerceu a obediência cega.
Se não, teria sido uma grande escritora, uma
talentosa romancista. Sua habilidade de contadora de histórias era notória. Ela
conseguia narrar com beleza o essencial em suas simples e cotidianas histórias
de família. Ela transmitia as sutilizas desse cotidiano, além da notável
capacidade de criar continuamente suspenses e desfechos inesperados,
surpreendentes.
E, claro, moralizantes. Suas histórias familiares
eram fábulas que ensinavam, cada uma, uma pequena lição. Não que tivessem, na
origem, tais lições. Esta era outra habilidade daquela boa senhora: ela extraia
do ato comum uma lição para todos nós e, como ela própria gostava de dizer:
para todo o sempre. Piscava e arrematava: Amém.
Sempre desejei transformar em contos, novelas,
romances aquelas que – cada vez mais lhe
cabem este nome – Histórias Espetaculares de Dona Sebastiana. Não faltou o
engenho. Faltou a arte.
Vovó viveu a opulência e a pobreza, mas ela própria
não diferenciava esses padrões em relação a sua felicidade. Não lhe fez falta o
dinheiro, quando o perdeu.
E só a vi lamentar – tristemente, de uma tristeza
perene – a perda de seus dois pequenos filhos, numa trágica seqüência de fatos.
A vida arrancou daquela jovem mãe dois filhos em dois dias.
De resto, suas queixas eram de pequena monta. E a
prova cabal de seu amor à vida e à sua família eu tive, num crepúsculo de
verão, na varanda da casa de mamãe em Ribeirão Preto. Vovó olhava o céu
vermelho. O calor dava naquele momento, pequena trégua. Uma aragem de chuva
tocou-nos, de leve.
E ela me disse, do alto de seus noventa anos: Sabe?
Eu vivi intensamente. Se tem uma coisa que fiz nessa vida, foi isso: viver,
intensamente.
Como eu – que conhecia toda sua trajetória, toda sua
vida – poderia supor que ela vivera intensamente? Vovó não realizara grandes
viagens, grandes negócios, não teve sequer um minuto de fama, não tivera ou
exercera qualquer ato ou função fora do âmbito doméstico e tampouco fora desse
contexto experimentara qualquer êxito. Tivera a vida comum das pessoas comuns
numa comum cidadezinha do interior de São Paulo. Poderíamos dizer até mesmo que
vovó foi uma autêntica caipira. Esse caipirismo às avessas ela trouxe a São
Paulo, quando se mudou, aos quarenta e poucos anos. Conservou com orgulho, seu
sotaque e jeito de falar, não incorporando um único trejeito da cosmopolita São
Paulo, nem mesmo quarenta anos depois. Sobre São Paulo ela dizia apenas: amo
esta cidade.
Mais um novo suspiro e repetiu a frase: amei muito
meu marido, vivi intensamente.
Só minha avó conseguiu dizer este advérbio como
tamanha verdade. Os advérbios aliás, contavam de suas narrativas para
estranhamento de quem conhecia seu grau de escolaridade. Grau de escolaridade
que vovó mencionava com um orgulho de nos encalacrar: eu tenho o primário incompleto.
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