sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Este ano as uvas serão dos pássaros 

Memórias de uma mulher que nunca deixou seus sonhos para trás.


Epígrafe:

O tempo parece vilão. Mas é apenas tempo,
templo que encerra nossa existência.


Prefácio

Em 29 de novembro de 2.006 vovó teria completado 100 anos se não tivesse morrido aos 92*. Ela desejou chegar aos 100, falava muito sobre isso. Partiu, contrariada. Desconheço alguém que partisse mais contrariado para o outro lado.
Vovó foi também  uma figura central (e controvertida) em nossa família e transmitiu-nos, continuamente, seu maior legado: suas idéias. Talvez nem pensasse que as tivesse. Elas – as idéias – se apresentavam naturalmente, como a chuva, o sol, o equinócio. E eram simples.
Se eu, ou qualquer um lhe dissesse: Dona Sebastiana, a senhora tem boas idéias! Ela, provavelmente se surpreenderia e talvez respondesse, simplesmente: É mesmo?
Acredito também que se minha avó tivesse vivido num ambiente da efervescência cultural do movimento modernista de São Paulo, por exemplo, talvez tivesse desenvolvido suas habilidades, seus talentos, abafados pela vida dura do campo, pelo ambiente sisudo das casas dos majores, coronéis, pais, padrastos, maridos produtores de café do início do século XX.
Assim, em vez experimentar o pensamento livre, exerceu a obediência cega.
Se não, teria sido uma grande escritora, uma talentosa romancista. Sua habilidade de contadora de histórias era notória. Ela conseguia narrar com beleza o essencial em suas simples e cotidianas histórias de família. Ela transmitia as sutilizas desse cotidiano, além da notável capacidade de criar continuamente suspenses e desfechos inesperados, surpreendentes.
E, claro, moralizantes. Suas histórias familiares eram fábulas que ensinavam, cada uma, uma pequena lição. Não que tivessem, na origem, tais lições. Esta era outra habilidade daquela boa senhora: ela extraia do ato comum uma lição para todos nós e, como ela própria gostava de dizer: para todo o sempre. Piscava e arrematava: Amém.
Sempre desejei transformar em contos, novelas, romances aquelas que – cada  vez mais lhe cabem este nome – Histórias Espetaculares de Dona Sebastiana. Não faltou o engenho. Faltou a arte.
Vovó viveu a opulência e a pobreza, mas ela própria não diferenciava esses padrões em relação a sua felicidade. Não lhe fez falta o dinheiro, quando o perdeu.
E só a vi lamentar – tristemente, de uma tristeza perene – a perda de seus dois pequenos filhos, numa trágica seqüência de fatos. A vida arrancou daquela jovem mãe dois filhos em dois dias.
De resto, suas queixas eram de pequena monta. E a prova cabal de seu amor à vida e à sua família eu tive, num crepúsculo de verão, na varanda da casa de mamãe em Ribeirão Preto. Vovó olhava o céu vermelho. O calor dava naquele momento, pequena trégua. Uma aragem de chuva tocou-nos, de leve.
E ela me disse, do alto de seus noventa anos: Sabe? Eu vivi intensamente. Se tem uma coisa que fiz nessa vida, foi isso: viver, intensamente.
Como eu – que conhecia toda sua trajetória, toda sua vida – poderia supor que ela vivera intensamente? Vovó não realizara grandes viagens, grandes negócios, não teve sequer um minuto de fama, não tivera ou exercera qualquer ato ou função fora do âmbito doméstico e tampouco fora desse contexto experimentara qualquer êxito. Tivera a vida comum das pessoas comuns numa comum cidadezinha do interior de São Paulo. Poderíamos dizer até mesmo que vovó foi uma autêntica caipira. Esse caipirismo às avessas ela trouxe a São Paulo, quando se mudou, aos quarenta e poucos anos. Conservou com orgulho, seu sotaque e jeito de falar, não incorporando um único trejeito da cosmopolita São Paulo, nem mesmo quarenta anos depois. Sobre São Paulo ela dizia apenas: amo esta cidade.
Mais um novo suspiro e repetiu a frase: amei muito meu marido, vivi intensamente.
Só minha avó conseguiu dizer este advérbio como tamanha verdade. Os advérbios aliás, contavam de suas narrativas para estranhamento de quem conhecia seu grau de escolaridade. Grau de escolaridade que vovó mencionava com um orgulho de nos encalacrar:  eu tenho o primário incompleto.



*Zélia Gattai usou esta adorável figura parecida para abrir um de seus deliciosos romances. Eu utilizo esta ideia como uma singela homenagem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário